Título: Capital da cultura
Autor: Miguel Gomes
Fonte: Jornal do Brasil, 09/05/2005, Outras Opiniões, p. A11

Era só o que faltava! Uma ONG de São Paulo obtém junto a organismos internacionais uma franquia para implantar aqui o programa ''Capital Brasileira da Cultura'' (www.capitalbrasileiradacultura.org.br), através de um concurso aberto a todas as municipalidades, cujo prêmio é o título. Tal projeto tem o apoio do governo federal. Este programa, Capital Americana da Cultura (CAC), tem as bênçãos da Unesco e é, sob certos aspectos, interessante: ano a ano selecionam uma cidade que, mobilizada para a obtenção do título e da divulgação se esmera e consegue em alguns casos até mesmo produzir avanços em programações, eventos e construção e reforma de seus bens culturais. O Rio mesmo já foi Capital Ibero-Americana da Cultura. Não resultaram grandes coisas do tal ano já que bastou ao Rio continuar sendo o que é. Até aí tudo bem. O programa é louvável na divulgação da cultura no mundo todo. Mas não pode ser aplicado no Brasil com este nome.

O título, e a posição, de capital cultural não está em jogo porque tem titular há 440 anos. E a titular tem tradição, patrimônio, vocação, talento e experiência no ramo. Nasceu pra isso! O poder político aqui se estabeleceu até 1960. Então, de história do Brasil, o Rio dá banho. Os grandes acontecimentos nacionais eram aqui. Temos um patrimônio edificado e tombado que é o mais importante da América do Sul, pela quantidade, pela variedade de épocas e estilos, e pelo cuidado na preservação.

Temos a Mangueira (e todas as outras escolas), temos a Nação RubroNegra, temos a Pedra do Sal, Copacabana e a Ipanema de Vinicius. Temos um equipamento cultural e de lazer fantástico, com parques, museus, centros culturais em todas as suas esferas. As mais importantes instituições culturais federais e estaduais estão na cidade do Rio. Eventos e casas de espetáculo temos à beça. Novos espaços de entretenimento estão surgindo. A Lapa revivida que o diga. Temos teatros particulares e a maior rede pública de teatros do continente. A sede da indústria audiovisual, não por acaso, está aqui.

Adoramos acarajé, churrasco, tutu, pequi e carne de sol. Nada contra qualquer lugar do Brasil. Mas convenhamos, se alguém resolve andar nu no meio da rua, em qualquer lugar do país a polícia prende mas se for no Rio, vai estar nas manchetes de todos os jornais nacionais e virar celebridade. Quando tem tiroteio em Manaus, o Brasil lamenta. Quando tem tiroteio no Rio, mesmo sem vítimas, o matuto fica com medo.

O carioca ama seu país e recebe e comunga dos símbolos e signos de cada região que, aqui, passam a ser de casa. Afinal, somos uma capital cultural radicalmente democrática. Às vezes até um pouco demais, na medida em que, por permitirmos tanto, não brigamos tanto por nossos valores e pelo nosso papel de síntese nacional o que, talvez, permita se aventar a hipótese de um concurso como este que tenta nos tirar o título que não nos foi dado por favor. Uma ou duas doses de bairrismo nos fariam bem. Claro que a cidade não perderá sua centralidade cultural no país por causa deste concurso. Mas não podemos abrir mão de sermos o que somos: a caixa de ressonância, o palco da crítica, a vitrine dos artistas e arena de debates da construção do Brasil. Chamarmos outra cidade de Capital Brasileira da Cultura só porque preencheu os itens de um edital de concurso é um despropósito.

Que se faça um Campeonato Brasileiro da Cultura numa disputa sadia pela valorização da causa cultural em cada município. Ao ganhador, o título de Campeão Brasileiro daquele ano. Neste caso, o Rio com certeza entraria com disposição de vencer. Se perdesse, tudo bem: isso faz parte do jogo. Sempre é possível numa temporada um time pequeno mostrar um grande desempenho e levar a taça de um favorito. Mas o que estaria em jogo seria a comparação entre as performances de cada cidade, num determinado ano e não uma posição mantida há mais de quatro séculos e que nunca encontrou desafiante à altura. Não tem lógica arriscar este título em apenas um jogo.

Vamos combinar assim: desde sempre ''São Paulo dá café, Minas dá leite, e a Vila Isabel dá samba''. E que falar de Capital Brasileira da Cultura, sem se referir ao Rio de Janeiro é tolice, nos ofende ou é armação.