Título: Triste pausa no compasso
Autor: Ricardo Albuquerque
Fonte: Jornal do Brasil, 09/05/2005, Rio, p. A14

A ousadia dos ladrões superou a harmonia das orquestras sinfônicas e atingiu em cheio o bolso dos músicos. Os roubos e furtos de instrumentos musicais cresceram nos últimos meses, desafiando as estatísticas oficiais que simplesmente ignoram os prejuízos milionários de oboístas, flautistas, violinistas e trombonistas. Delegados e investigadores afirmam ¿ como se formassem um coral desafinado e uníssono ¿ que o sumiço de objetos musicais faz parte do acaso. ¿ Não há uma quadrilha especializada em roubar instrumentos musicais. Pelo menos, no Rio de Janeiro. O que existe é uma lamentável coincidência: os carros são roubados e os objetos estão dentro dos veículos. A nossa linha de investigação aponta para uma provável quadrilha de receptores, que praticam esse comércio ilegal ¿ afirma o delegado Gilson Nascimento, titular da 7ª DP (Santa Teresa), onde uma flauta, um flautim e um oboé integram, há dois meses, uma lista quilométrica de objetos roubados à espera de serem de recuperados por seus donos.

A violência assusta o primeiro oboísta da Orquestra Sinfônica Nacional (OSN), Harold Emert, de 61 anos de idade, 32 de Brasil há 46, emprestando a força de seus pulmões à música erudita. Em 28 de novembro de 2004, seu oboé de US$ 5 mil desapareceu do depósito da OSN, instalado nas dependências da Universidade Federal Fluminense (UFF), no bairro de Icaraí, em Niterói. O diretor da orquestra, Bernardo Carleoni, abriu processo administrativo para apurar o desaparecimento, o primeiro desde 1984, ano em que a UFF assumiu a direção da OSN. Na delegacia de Santa Rosa, as investigações apontam para lojas receptadoras, em Niterói, nomes que os policiais mantêm sob sigilo para não atrapalhar as apurações.

¿ O certo é que precisávamos de investigadores com instinto de Sherlock Holmes para desvendar rapidamente este mistério da violência urbana ¿ compara. A flautista Andréa Ernest Dias perdeu a flauta Haynes e o flautim Marigaux, avaliados em US$ 5 mil cada, em junho de 2004, perto de sua casa, em Santa Teresa. Rendida por quatro homens armados, a flautista da OSN e membro da diretoria do Sindicato dos Músicos do Rio de Janeiro entregou o Gol prata sem esboçar reação. O prejuízo material afetou o desempenho profissional: é obrigada a utilizar equipamentos de qualidade inferior, para cumprir a agenda de apresentações.

¿ A única coisa que pensei na hora do assalto foi: ¿lá se vai meu patrimônio, conseguido às custas de muito sopro¿. Não fosse o dinheiro do seguro do carro, sequer teria comprado novas peças ¿ observa.

A traumática experiência de Andréa não é a única de sua família, onde quatro dos cinco irmãos são músicos profissionais. O carioca radicado em Belo Horizonte, Carlos Dias Ernest, 41 anos, veio ao Rio de Janeiro, no dia 3 de abril, para participar da homenagem feita pela Embaixada da França a sua mãe, a flautista francesa Odhet Ernest, no Teatro Maison de France, no Centro. Professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Dias e a mulher foram rendidos, na volta da apresentação em Santa Teresa, por dois homens armados, que levaram o carro com tudo dentro, exceto o celular que o instrumentista manteve no bolso do paletó. O oboé da marca Marigaux, avaliado em R$ 8 mil, entrou para a lista dos instrumentos desaparecidos.

¿ Não tivesse 20 anos de uso, valeria o dobro, no mínimo. Fica um vazio dentro da gente, mas como eu me dedico a outras atividades, como compor canções de MPB, fazer arranjos e dar aulas, procuro esquecer o que aconteceu. Não vale a pena ficar batendo nessa tecla ¿ observa Dias, que já integrou as orquestras sinfônicas de Brasília, São Paulo e Minas Gerais.

A hipótese de uma quadrilha especializada em roubar instrumentos musicais, no Rio de Janeiro, também é rechaçada pelo professor da UFMG. Acredita, porém, que haja receptadores profissionais, revendendo os instrumentos para outros estados ou cidades do interior. O segundo trombonista da OSN, Jorge Leite, lamenta prejuízos, que ultrapassaram os R$ 10 mil ¿ além do instrumento, os três ladrões levaram dois afinadores especiais e uma pasta com livros didáticos importados, especialmente elaborados para ensinar trombone.

Integrante da orquestra da UFRJ, Pierre Jatobá, de 45 anos, enfrenta os riscos de um assalto diariamente, levando seu oboé de US$ 5 mil para os mais diversos lugares, andando de ônibus.

¿ Dois pivetes roubaram todo mundo no ônibus, mas me aliviaram, pensando que eu fosse de alguma igreja. Não entendi nada. Ando com receio, mas nunca me aconteceu nada ¿ conta Pierre.