Título: Não podemos desistir do Fome Zero
Autor: Carlos Lessa
Fonte: Jornal do Brasil, 08/05/2005, Economia, p. A20

A fome integra o time dos cavaleiros do apocalipse. No Brasil, é multissecular. Devemos a Josué de Castro e a Silva Mello o alerta conceitual e empírico sobre o quadro sistêmico de fome e desnutrição crônica. Sempre cultivei o trabalho do mestre pernambucano. Repercutiu com tanta influência que inspirou, após a Carta dos Direitos Fundamentais do Homem, o nascimento da FAO, da ONU. No Brasil, durante os anos 1930, nossos médicos sanitaristas se debruçaram sobre este problema. As Forças Armadas foram, daquela época em diante, fonte de estudos sobre as seqüelas da fome. As Juntas de Recrutamento para a FEB recusaram inúmeros mobilizados por trazerem consigo as marcas da fome desde a infância. A primeira e mais visível iniciativa foi a legislação que passou a obrigar as fábricas maiores a terem refeitório. No início dos anos 1950 foram instalados os restaurantes do Serviço de Alimentação da Previdência Social ¿ SAPS .

Ao longo de décadas, foram se multiplicando iniciativas. A obstetrícia e a puericultura buscaram priorizar a atenção materno-infantil. Destes esforços nasceu o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição ¿ INAM, que mapeou a fome no Brasil.

Em algum momento, o tema incentivou a multiplicação de programas. Segundo variantes conceituais e operacionais, havia nove programas apenas na esfera federal. Respondendo a linhas burocráticas diferenciadas, todos eram pequenos, com reduzida cobertura e eficácia. Além do mais, sujeitos a oscilações e descontinuidades.

O cavaleiro do apocalipse continuou se movendo com grande liberdade no território brasileiro, das metrópoles sofisticadas até os modestos vilarejos do interior. O presidente Sarney, na Nova República, por sugestão de Anibal Teixeira, criou o programa do Vale Leite. Seu alvo seria permitir que as crianças menores de sete anos das famílias pobres tivessem o mínimo diário de proteínas. Com formato inteligente e ágil implantação, permitiu que, ao final daquele governo, 4 milhões de crianças estivessem bebendo o leite. Entre as desconstruções do neoliberal Fernando Collor de Mello, esteve o brusco cancelamento do programa. Na ocasião, o Banco Mundial identificou um declínio da mortalidade infantil e o atribuiu, em parte, à distribuição do leite.

Nos anos 1990, no rastro da estagnação econômica, com destruição e informalização de empregos e degradação de níveis de renda, o neoliberalismo no Brasil estimulou a besta do apocalipse. A opinião pública, desligada em relação ao tema, dava uma certa invisibilidade ao drama dos tantos que iam dormir com fome. Devemos ao sociólogo e idealista Herbert de Souza, meu saudoso amigo Betinho, o choque moral que recolocou, para a sensibilidade dos brasileiros, a presença da fome. Afirmava que, no ¿combate à fome, havia o germe de mudança do país¿. Proliferaram comitês inspirados na Ação da Cidadania e pela Vida.

Obviamente, é inócua a doação de alimentos obtidos pela assistência a um show. Embora meritória, é insignificante a doação de cisternas (creio que cinco mil) pela Febraban ¿ cabe não esquecer que o semi-árido precisa de quase um milhão delas. Ainda assim, são inequívocas manifestações de que a mobilização ética teve sucesso. O enfrentamento pelo estruturante exigirá um robusto orçamento público ¿ não será um estado debilitado pela opção aos altos juros e comprimindo gastos o agente preparado para extirpar o mal.

O PT, a partir dos trabalhos da Fundação Perseu Abramo, aprofundou-se na questão da segurança alimentar. De forma correta, associou-a ao saneamento e à saúde da população infanto-juvenil. À guisa de exemplo trágico, no município de Duque de Caxias, a pesquisa de campo feita pela Petrorio constatou que 60% das crianças tinham alguma verminose, e que metade tinha dois tipos de infestação. Mesmo com a suposição heróica de que todos ingiram a quantidade correta de alimentos, na verdade, quem prospera são os vermes. O município não tem rede de esgoto adequada.

José Graziano desenvolveu um Plano Básico, que o presidente Lula anunciou com o nome Fome Zero. Publicamente, houve urbi et orbi o compromisso de que, findo o quatriênio, ninguém iria dormir com fome (a não ser os fanáticos por dietas). Foi intensa a mobilização: em fins de 2003, 1.508 instituições apresentaram projetos de inclusão social e foram credenciadas a utilizar a logomarca do Fome Zero. 770 mil famílias passaram a receber um litro de leite ao dia por este programa, cujo foco está na aquisição do produto de 32 mil pequenos produtores.

Simbolicamente, o Fome Zero escolheu pequenos municípios, extremamente pobres, do interior brasileiro para começar a erradicação da fome. Guaribas, no Piauí, foi vila-símbolo. Não faltou publicidade. Creio que esteve ausente a objetividade. Nada é mais difícil ao poder público que distribuir fisicamente alimentos. A logística capilar sempre falha. O programa deveria ter lançado mão da rede escolar primária. O Brasil tem um extremamente bem sucedido programa de atração das crianças pobres às escolas: o PNAE ¿ Programa Nacional de Alimentação escolar distribui merenda a mais de 37 milhões de alunos (97% das urbanas e 98% das rurais). A merenda chega a cinco milhões de alunos das pré-escolas públicas e filantrópicas. Há o atendimento de 18 mil creches sociais com 881 mil crianças e a cobertura dos 115 mil alunos das 1700 escolas indígenas.

A merenda tem sucesso em atrair as crianças, mas não é um programa contra a fome. Distribuir merenda pelos dias do ano escolar atrai mas não supera a fome nem da criança, nem da família pobre. Somente um programa pelos 365 dias do ano garante a adequada nutrição infantil. Implantado, tem o mérito de liberar para os adultos da família o alimento que podem adquirir. Não consigo entender por que não se centralizou o Fome Zero na rede escolar, convertendo a merenda num real instrumento de erradicação da fome.

Quero felicitar o município de Jandira, na periferia da grande São Paulo, o quinto menor IDH daquele estado, por sua coragem institucional. Tem 100 mil habitantes, dos quais 28.500 entre 0 a 14 anos. Está empenhado em fornecer 3 refeições diárias aos 21.700 alunos da rede de escolas (municipais e estaduais) e para as 987 crianças das creches. A unidade piloto está na escola Sátiro de Souza, na Vila Ouro Verde. Mais de 50% das crianças estão demandando as três refeições e 100% pelo menos uma. As famílias estão cooperando. No município de Bagé, outra experiência similar está em gestação. A coordenação presidencial do Fome Zero tem que se debruçar sobre estas experiências. Não tem sentido dissolver o Fome Zero na vastidão da inclusão social ¿ esta depende da geração de empregos. Até lá, utilizando a rede escolar, poderemos nos aproximar da promessa inicial do presidente Lula. O Brasil tem que domar o sinistro cavaleiro.

*Professor do Instituto de Economia da UFRJ e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social