Título: A hora do vale-tudo
Autor: Paul Harris
Fonte: Jornal do Brasil, 18/10/2004, Internacional, p. A-7

A 16 dias da eleição americana, baixaria, violência e jogo sujo viram parte da estratégia de campanha dos candidatos

A sala é escura como o humor de Lynn Cheney. A mulher do vice-presidente Dick Cheney não tem papas na língua: comenta que em seu estado natal, Wyoming, ''quando você quer fazer alguma coisa feia parecer bonita, dizemos que você está passando batom no porco''. A citação é feita no momento em que aparece, em um telão, a imagem do candidato democrata à Presidência dos EUA, John Kerry. A platéia, republicana, racha de rir.

Chamar Kerry de porco é algo incomum, mesmo em uma campanha que abriu novos limites para a agressividade. Tanto que ninguém reclamou, nem mesmo os democratas. Com apenas 16 dias para as eleições, os dois lados farão ataques muito piores. É tanta lama, que se obscurece o fato principal, a disputa cabeça a cabeça.

A performance de Kerry nos debates o trouxe de volta à corrida. Todas as últimas pesquisas mostram isso. Em setembro, o democrata recebeu uma série de ataques devastadores a respeito de sua participação no Vietnã que deixaram sua campanha paralisada. Agora a vantagem de Bush desapareceu e os dois lados lutam acreditando que poderão vencer mostrando as falhas do adversário.

O cenário dessa guerra é o grupo de cerca de 10 estados indecisos, que concentram 75% de toda a propaganda eleitoral. Destacam-se Ohio, Flórida, Pensilvânia e Wisconsin. Na fase atual, encerrado o período da mobilização pelo registro dos eleitores, vem a da mobilização das massas.

É a hora do efeito político, já que em alguns desses estados o índice de eleitores dispostos a votar não chega a 3% (nos EUA, o voto não é obrigatório). O tempo dos debates acabou, está na hora de botar as tropas na rua.

Em um parque florestal perto de Saxonburg, essa pequena cidade da Pensilvânia, um herói local esquenta o comício com 3 mil pessoas que aguardam a chegada de Dick Cheney. Sid Bream, astro do time de beisebol, tem palavras raivosas.

- Os democratas querem queimar a nossa bandeira. Eles querem incentivar o aborto, querem incentivar o sexo para os nossos adolescentes - afirma. - Precisamos ter certeza de que vocês vão dizer aos seus amigos que caçam que eu estou garantindo que John Kerry e John Edwards estão empenhados em tomar as armas deles.

Não há qualquer evidência disso, pelo contrário. Kerry já se disse apaixonado pela caça várias vezes. Mas a essa altura da campanha, pouca diferença faz. Quando Cheney deixa seu ônibus saudando a multidão, completa:

- Enfrentamos um inimigo tão empenhado em nos destruir como o Eixo estava durante a 2ª Guerra Mundial.

Os democratas também não estão quietos. A menção de Kerry à filha lésbica do vice-presidente na discussão sobre casamentos gays não foi à toa. Edwards já tinha feito o mesmo no confronto com Cheney. Republicanos acusaram o ''golpe baixo'', mas Mary Beth Cahill, uma das estrategistas do comitê de Kerry, disse que era ''um jogo justo''.

Houve outros incidentes menos conhecidos. Durante protestos em frente a um comitê republicano, uma violenta batalha campal irrompeu na rua entre sindicalistas e manifestantes. A polícia conseguiu impedir que o escritório fosse invadido. Na Flórida, um funcionário do comitê teve um pulso quebrado e no Tennessee outro escritório republicano foi alvo de ataques a tiros. Por todo o país, as emoções estão aflorando.

No comício de Saxonburg, Eunice Hixon, uma enfermeira aposentada, conta como sai pela vizinhança arrancando todos os cartazes pregados em casas de eleitores de Kerry.

- Eles são todos uns idiotas. Democratas são idiotas - repete.

Perto dali, John Simpson, que apóia o senador, tem definição semelhante sobre Bush:

- Eu apóio John Kerry porque Bush é um estúpido - afirma.

Assim que o comício de Cheney termina, chegam a Saxonburg dezenas de simpatizantes da campanha democrata. Um deles usa um capuz e se veste como os prisioneiros torturados pelos soldados dos EUA no Iraque. Até arames farpados fazem parte da roupa. O tempo esquenta e discussões explodem de lado a lado. Uma mulher, em pânico com a confusão, acaba jogando seu carro para fora da estrada.

Por trás de tamanha agressividade está a recuperação de Kerry na corrida. Seus assessores ''tiraram as luvas'' e o muniram de armas para atingir Bush em cheio. Apesar de ser conhecido como um homem de inteligência comum e dificuldade de se expressar, Bush é um bom debatedor. Mas seus conhecimentos parcos o traíram: em quatro anos como presidente, só concedeu 15 entrevistas coletivas sozinho, contra 42 de Bill Clinton e 83 de seu pai. A tática de comparar Bush filho ao Bush pai surpreendeu os republicanos:

- Eles foram apanhados desprevenidos no primeiro debate, não acreditavam que pudessem perder - diz David Lanoue, diretor do centro de ciências políticas da Universidade do Alabama.

Ninguém precisa dizer ao pastor Jack Stepp sobre convicção. Em uma festa após assistir ao último debate, em Pittisburgh, ele pediu que todos fizessem uma prece. Embora usasse o colar clerical, trazia um broche de Bush na lapela. Rezou para que o presidente vencesse a disputa e pediu a Deus que desse ao presidente ''a dádiva do discurso'' e que se pudesse assistir à vitória de Bush em novembro.

Cheney foi a Saxonburg na primeira visita de um vice-presidente ao condado de Butler em 22 anos, e obteve por isso enorme cobertura da imprensa local. A tática já tinha sido usada por Bush em Portsmouth, Ohio, quando ele foi o primeiro presidente a aparecer por lá desde Howard Hoover em 1932. Já Kerry parou em Newark, Ohio, que viu um candidato à presidência pela primeira vez desde William Henry Harrison em 1840.

Bush esteve três vezes na Pensilvânia esta semana, Kerry duas. Cada comitê gastou US$ 2 milhões em anúncios nas TVs e rádios do estado. É a disputa chave: se Kerry vencer aqui, terá uma base assegurada nos estados indecisos. Até agora, a estratégia democrata tem funcionado.

O essencial agora é garantir que todos aqueles que se registraram para votar consigam fazê-lo. Bush montou uma estrutura, dirigida por Karl Rove, com 1,2 milhão de funcionários em comitês por todo o país. Além disso, foi preparada uma tática específica para as últimas 72 horas de campanha, que é mantida em absoluto segredo. Os voluntários são proibidos de falar do assunto.

Tanto sigilo se justifica. Os democratas este ano estão sendo ajudados por organizações interessadas em ampliar o número de votantes anti-Bush. Uma delas, de Ohio, a America Coming Together, fez 3,7 milhões de visitas a casas de eleitores. Em uma semana seus voluntários bateram em um milhão de portas por todo o país.

Os dois lados também estão preparados para uma batalha legal. Só na Flórida, pivô do fiasco eleitoral de 2000, cada lado tem cerca de 2 mil advogados preparados para entrar em ação. A possibilidade de a eleição acabar sendo decidida também nos tribunais é bem real. A justificativa é a ausência de urnas tradicionais, substituídas por máquinas de voto eletrônico que não permitem o acompanhamento de cada cédula, o que abre o caminho para questionamentos sobre legitimidade.

- As diferenças entre os dois candidatos são tão extremas quanto poderiam ser. As conseqüências são enormes - Cheney termina seu discurso com um dado que é uma das poucas coisas em que democratas e republicanos concordam.

A guerra do Iraque também pode representar papel importante daqui para a frente. Mas os eleitores já têm sua opinião formada. Ou confiam cegamente Bush ou o odeiam.

- Não estaríamos no Iraque da forma como estamos se George Bush não tivesse uma boa razão para fazê-lo - diz Karen McKnee, ao lado dos dois filhos, diante do palanque de Cheney.

Já o bancário Dave Sunderlin segue pelo lado oposto:

- Bush mentiu, provavelmente por causa do petróleo - argumenta, reforçando o antagonismo que faz da Pensilvânia tão fundamental para os dois lados.