Título: As forças centrífugas
Autor: MAURO SANTAYANA
Fonte: Jornal do Brasil, 11/05/2005, País / Coisas da Política, p. A2
O regime presidencialista brasileiro, tendo nascido de um pronunciamento militar e vivido muito tempo sob a tutela dos quartéis, desenvolveu-se marcado pelo estigma da hierarquia e da obediência. Mal tolera as discussões deliberativas, aborrece-o a transparência, prefere as engrenagens paralelas à máquina institucional. E por ser assim, e enquanto for assim, o sistema pede um presidente com autoridade. Isso não significa a exigência de um sargentão, mas de quem tenha noção de mando. Juscelino, por exemplo, era cordial, mas chefe intransigente. Tancredo dizia "não", de forma definitiva, com um sorriso e a simples oscilação do indicador. O grande problema do governo Lula está aí: o presidente quer governar com conselheiros, e os conselheiros não se entendem. Entre Lula e o PT há estranho relacionamento. Muitos dos pró-homens do partido, à direita e à esquerda, acham que a agremiação construiu o prestígio eleitoral do chefe, e que o chefe deve obedecer a cânones. Os mais próximos do afeto do presidente raciocinam de outra forma: Lula fez o partido com o prestígio pessoal, obtido no peito e na raça. Sem Lula, concluem, não teria havido PT. Trata-se, enfim, de saber se a organização poderá sobreviver ao líder, ou se trata de uma daquelas situações anteriores ao surgimento dos partidos modernos, em que as seitas políticas tinham chefes, mas não idéias, e se formavam sob os princípios romanos da fides e da clientela.
Tendo construído a personalidade política no sindicalismo, Lula é aglutinador por formação. Por mais que queiram vê-lo de outra maneira, não consegue ser autoritário. Esse é um dos circunstanciais paradoxos do sistema que, como tantos outros, clama pela descentralização geográfica do poder, enfim, pela recuperação e atualização do pacto federativo. O governo vem gastando quase toda a energia em busca de discurso único e ação coordenada, agora com o novo elemento perturbador da reeleição. Pouco lhe resta de força e ânimo para intervir na realidade, e, assim, administrar o país.
O grupo de anarquistas catalães que editava a revista Bicicleta realizou, há quase 30 anos, instigante discussão sobre a luta interna nos centros de poder. Seu projeto era o de tomar o poder da periferia para o centro, a partir da constatação de que o mando se debilita ao expandir-se no espaço. É a aplicação da lei das ondas centrífugas, como as provocadas pela pedra que se atira no meio do lago: elas chegam muito tênues às margens, ou nem mesmo as atingem. Segundo a tese, mais de 50% da energia de qualquer governo se perde nas disputas pessoais de poder. É o que podemos constatar no noticiário político, em que escasseiam idéias e programas, mas sobram informações sobre o desgaste de Aldo Rebelo (um dos políticos mais sérios da República), o convívio difícil entre José Dirceu e Palocci, atribuído ironicamente à diferente exegese das idéias de Trotski; o nascente conflito entre Marco Aurélio Garcia e o próprio José Dirceu, cada um deles pretendendo ser uma espécie de Talleyrand da República, com a necessária ressalva de que não cometem os graves pecados do príncipe, nem dispõem do mesmo talento. Dissídios menores se espalham por toda a máquina do Estado.
Assim se exaure a energia do governo, enquanto prosperam a oposição e a angústia pré-eleitoral. São muitas as frentes do conflito político. Cresce a discussão do problema federativo, na administração do Estado e na constelação partidária. Aliados de primeira hora de Lula, como é o caso do governador Roberto Requião, rebelam-se, e com razão, contra o centralismo em questões graves, como a do cultivo de transgênicos. A oposição se aproveita, como é natural, das hesitações e dificuldades, e procura ocupar de qualquer forma o espaço político. O perigo maior é o da desestabilização do sistema democrático, com as conseqüências conhecidas.
A História tem o péssimo vezo de se repetir.