Título: Além do Fato: O Brasil jogou um bumerangue
Autor: Marcelo Ambrosio
Fonte: Jornal do Brasil, 11/05/2005, País / Além do fato, p. A4

Não adianta dizer que a cúpula árabe-sul-americana foi um sucesso. Ficou longe. A diplomacia brasileira cochilou na análise do cenário de reuniões preparatórias que antecipava o encontro, justamente o momento onde os Estados atores realmente jogam as suas fichas para que a cúpula apenas coroe um processo de negociação. E o resultado foi ver o discurso do presidente Lula ser ignorado e a agenda oficial subvertida para uma discussão internacional que em nada atenderia aos interesses brasileiros. A ausência prevista da Jordânia, do Egito e da Arábia Saudita, que normalmente exercem papel de ¿moderados¿ nos debates da Liga Árabe deveria ter sido anotada como alerta. Afinal, na presidência rotativa estava o argelino Abdelaziz Bouteflika, sabidamente crítico feroz da ocupação dos territórios palestinos e do apoio dos EUA a Israel.

Bouteflika não veio ao Brasil fechar negócios. Repetiu em Brasília o mesmo discurso que se habituou a fazer, e que já parece ultrapassado pelo desenrolar do processo em curso no Oriente Médio. Em termos pragmáticos, o que ouvi em Jerusalém e entre alguns palestinos indica a necessidade de se discutir em novas bases para romper o impasse do qual os dois lados se cansaram.

O viés da cobrança poderia ter sido amenizado se Brasília não tivesse vetado, de acordo com fontes do Departamento de Estado citadas na imprensa dos EUA, a presença de um observador americano no encontro. Se a cúpula valeria como currículo para um lugar no Conselho de Segurança da ONU, tal autorização seria uma chancela de soberania e isenção.

Como a topada em geral termina em tombo, a declaração final da cúpula condenou o terrorismo, mas cedeu espaço à reafirmação do ¿direito de resistência à ocupação estrangeira¿. A legitimidade da frase é óbvia, mas a sua inserção na declaração final de uma cúpula que se pretendia econômica a transformou num bumerangue: foi lida tanto em Washington quanto em Israel como uma espécie de salvaguarda para grupos como o Hamas e o Hisbolá. Se é ou não, tanto faz. O que ficará na História é a versão e o tamanho do estrago que ela causará ainda não se sabe.

Seguindo a ótica, até a pirotecnia argentina tem uma explicação que endossa a avaliação pessimista. É tradição na política de Buenos Aires buscar aproximação com os EUA em momentos de crise. Kirchner pode ter percebido que valia a pena capitalizar o descontentamento americano e fez de sua saída teatral um recado direto para Washington: ¿não temos nada com isso¿.