O Globo, n. 32796, 23/05/2023. Política, p. 4

Derrotas à vista

Camila Turtelli
Manoel Ventura


O Congresso se arma para impor novas derrotas ao governo diante da iminência da perda de efeito de nove Medidas Provisórias (MPs), que vão vigorar apenas até 1º de junho. Parlamentares se articulam para esvaziar os ministérios do Desenvolvimento Agrário, chefiado pelo petista Paulo Teixeira, e do Meio Ambiente, de Marina Silva, transferindo atribuições à pasta da Agricultura, comandada por Carlos Fávaro, nome do PSD tido pela bancada ruralista como mais moderado. Além disso, os congressistas planejam ressuscitar a Fundação Nacional da Saúde (Funasa), que havia sido extinta pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e enterrar a proposta que ampliaria os poderes do governo no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

As Medidas Provisórias são propostas do Executivo que começam a valer imediatamente após a publicação. Esse tipo de dispositivo, no entanto, precisa ser aprovado pelo Legislativo em até 120 dias, caso contrário, deixa de vigorar. A primeira leva de MPs do governo Lula tem prazo de validade de mais dez dias. Deputados e senadores trabalham para derrotar o Palácio do Planalto na mais simbólica delas: a proposta por meio do qual o presidente definiu a nova estrutura do governo, criando pastas e extinguindo outras.

O relator dessa MP, deputado Isnaldo Bulhões (MDBAL), deve apresentar seu parecer hoje. Na noite de ontem ele se reuniu com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para debater o assunto. Também estava previsto um encontro com o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha.

A preocupação do Planalto tem um fundamento: caso a falta de acordo impeça a votação do texto, o desenho ministerial deixado por Jair Bolsonaro voltará a valer —eram 23 pastas no lugar das 37 de hoje, com atribuições distintas das atuais. Além do impacto no atraso de projetos, o impasse obrigaria que servidores fossem realocados, provocaria efeitos orçamentários e mexeria na divisão de cargos, executada também com o objetivo de ajudar na construção da base.

O Congresso instalou no começo de abril uma comissão mista, com deputados e senadores, para analisar a medida. O colegiado teve apenas duas reuniões: uma para eleger presidente e escolher relator e outra para realizar uma audiência pública.

Vitória dos ruralistas

O relatório deve prever que a Conab deixe de ter a função de organizar o abastecimento e definir a política de preço de alimentos. Essas tarefas seriam transferidas ao Ministério da Agricultura. Na prática, a estrutura que ficaria com o Desenvolvimento Agrário, chefiado por Paulo Teixeira, teria pouca relevância. Já a pasta de Carlos Fávaro (PSD) seria turbinada. Ontem, ao GLOBO, o líder da bancada ruralista, deputado Pedro Lupion (PP-PR), elogiou Fávaro, em meio a críticas sobre a relação do Planalto com o setor.

— Manter atribuições da Conab no Ministério do Desenvolvimento Agrário talvez não seja uma medida qualitativa para a operacionalidade do armazenamento e da redistribuição da safra agrícola —disse o deputado Danilo Forte (União-CE), em abril, durante a audiência pública sobre o assunto.

A Agricultura também deverá receber o Cadastro Ambiental Rural (CAR), área que interessa ao agronegócio, já que engloba os registros eletrônicos dos imóveis, integrando informações ambientais e das propriedades em si. Por pressão dos ambientalistas, a responsabilidade voltou para o Ministério do Meio Ambiente, de Marina Silva, na largada da atual gestão —modificação que poderá ser desfeita em uma nova queda de braço. Uma nota assinada na semana passada por 120 organizações, incluindo ONGs e movimentos sociais, criticou a hipótese de alteração.

Outra mudança que deverá esvaziar a pasta de Marina trata da política nacional de irrigação. A tendência é que o parecer deixe a área sob o comando da Integração Nacional, que tem à frente o ministro Waldez Góes. Ele foi indicado pelo senador Davi Alcolumbre (União-AP), presidente da comissão que analisa a MP. Também está sendo negociada no Congresso a realocação de tarefas da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). O Ministério dos Povos Indígenas, de Sônia Guajajara (PSOL), perderia funções para a pasta da Justiça, sob o comando de Flávio Dino (PSB).

Há ainda a intenção de inflar o Ministério do Planejamento, chefiado por Simone Tebet (MDB), e retirar poderes da Casa Civil, cujo titular é Rui Costa, que enfrenta resistências no Congresso. Parlamentares do MDB apresentaram emendas para que a pasta de Tebet passe a centralizar estudos e análises técnicas e orçamentárias de propostas de políticas públicas e de reformas. Um grupo quer ainda transferir para o Planejamento a coordenação das ações do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), hoje sob o guarda-chuva de Costa.

Aviso prévio

Extinta no início do ano, a Funasa, por sua vez, está na mira do Centrão e dos partidos de centro que integram a base. O governo já foi avisado que a norma vai expirar sem que seja votada. O órgão, que tinha orçamento previsto de R$ 2,9 bilhões, tem histórico de loteamento político nos estados. Durante o governo Bolsonaro, a fundação era controlada pelo PSD.

Uma emenda apresentada pelo líder do União Brasil, senador Efraim Filho (PB), prevê que parte de suas funções seja incorporada pelo Ministério da Integração Nacional, comandado por um indicado de seu partido. Outra parcela ficaria sob responsabilidade da pasta das Cidades, chefiada por Jader Filho, do MDB. Relator da medida, o deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL) já manifestou publicamente a contrariedade com a decisão de acabar com a Funasa.

— Extinções sempre causam insegurança. Como ficarão as atribuições e investimentos? —disse ele ao GLOBO em março.

Na seara econômica, o Planalto está ciente que a mudança feita no Carf perderá efeito. A MP determinou a volta do desempate pró-Fisco nas discussões na Corte, que julga processos administrativo contra decisões da Receita. Desde 2020, em caso de empate, a decisão beneficiava o contribuinte. O governo não concorda, e defende a volta do modelo em que os presidentes de turmas e câmaras votam caso haja empate, o que na maioria dos casos favorece a União. As mudanças nas regras do Carf são consideradas parte importante à estratégia de aumento de receitas. A Fazenda estimava arrecadar cerca de de R$ 50 bilhões com a medida. Com a derrota iminente, o governo vai transformar a MP em um projeto de lei, o que também encontra resistência no Congresso.

Também há pressão do Congresso para reverter a ida do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Banco Central para a Fazenda. Desta forma, o órgão voltaria para a alçada de Roberto Campos Neto.