Título: América Latina
Autor: Ricardo Antunes
Fonte: Jornal do Brasil, 12/05/2005, Outras Opiniões, p. A13

Tem sido dito com alguma constância que os países andinos estão vivenciando uma fase de ''instabilidade democrática'': Bolívia, Equador, Peru, Colômbia, Venezuela, vários seriam os exemplos capazes de inquietar e tirar o sono dos senhores da América.

É como se, uma vez desenhada a arquitetura institucional eleitoral, os povos indígenas deveriam cumprir o ritual e, como conseqüência do ato, aceitar todas as mazelas, embustes e estelionatos que têm sido freqüentes nos processos eleitorais latinoamericanos.

Nos Andes gestou-se uma cultura milenar, cujos valores, sentimentos e modo de vida são muito distintos daqueles vigentes em nosso tempo, mensurado pelo ritmo dos relógios cujos ponteiros são cronometrados pelo capital. A calma indígena, em contraposição, nos ensina a ter paciência e persistência, em oposição ao tempo (quase virtual) dos mercados.

Mas os povos andinos também sabem se rebelar. E estão dando claros sinais de cansaço e irritação em relação à ''democracia institucional'' cada vez mais geradora da conservação, cada vez mais acomodada aos mercados globais e seus valores destrutivos, cada vez mais conivente com a miséria e vilipêndio, brutalidade e barbárie, desemprego e flagelo.

No Peru, por exemplo, saiu pelos fundos o pequeno bonaparte Fujimori, corrupto até a alma e subiu Toledo, aparência de índio e cabeça de ianque. Captou o sentimento de mudança para manter o receituário da barbárie. Agora acumula índices de completa e cabal rejeição popular.

No Equador, um ex-lider militar que encabeçou um levante popular e indígena, de nome Gutierrez, tornou-se presidente pelo voto é transmudou-se num vil gendarme dos EUA, responsável por um governo corrupto e abjeto. De representante eleito pelo povo ''cambiou-se'' em representante das ''elites''. Foi posto para fora do país, numa fuga em que o governo brasileiro esteve tristemente presente. Na Bolívia, onde até a água parece estar nas mãos de transnacionais oriundas de um continente tido como civilizado, os povos indígenas não suportam mais a ''institucionalidade'' da conservação e da submissão. Um presidente foi deposto faz pouco tempo e o que lhe sucedeu tem a mesma cara da privatização que traz mais privação.

Na Venezuela, contra as várias tentativas de golpe sofridas por Hugo Chavez, os pobres dos morros de Caracas desceram as ruas para recuperar o poder do povo e recolocar Chavez na presidência da República, depois de um ignóbil golpe civil-militar, ao qual se seguiu um locaute da empresa petrolífera que ia se locupletar com a privatização, sem falar na majestosa vitória popular do governo Chavez no recente referendo. Qualquer cidadão que anda pela Venezuela, hoje, em todas as partes do país, percebe a forte organização popular que lá está se gestando, o que é suficiente para exasperar as ''elites'' que querem a preservação da barbárie latino-americana. Na Colômbia, apesar da ingerência militar direta dos imperialismo dos EUA, a guerra civil se mantém intensa e, apesar da presença norte-americana, é forte a resistência armada.

Junto com os andinos, outros povos latinoamericanos também vêm se rebelando, como se pode visualizar nessa fase de resistência e avanço das lutas sociais em toda a América Latina. Na Argentina, por exemplo, estamos presenciando já há alguns anos a organização dos trabalhadores desempregados, denominados ''piqueteros'', que depuseram junto com as classes médias, no levante de dezembro de 2001, vários pretensos usurpadores-presidentes. Estamos vendo também a ampliação de um importante processo de ocupação de fábricas pelos trabalhadores exigindo trabalho e emprego, num país que chegou ao fundo do poço e do servilismo em relação ao FMI e sua política destrutiva.

A resistência zapatista no México, que teve papel fulminante nos anos 90, quando muitos acreditavam que a história tinha encerrado seu ciclo; a resistência heróica do povo de Cuba que desconcerta o bloqueio tenaz do gigante imperial do Norte; a luta do MST e sua bela manifestação contra o Brasil do latifúndio e da concentração fundiária, são vivos exemplos dos impulsos que brotam das lutas sociais e políticas da América Latina. Alguns podem, então, perguntar: são ''antidemocráticos'' estes movimentos e estas manifestações? Querem a volta das horripilantes ditaduras militares na América Latina?

Talvez fosse interessante, ao contrário, fazer outra indagação: será que a chamada ''institucionalidade'' vigente não tem se tornado freqüentemente antípoda da efetiva democracia, do real poder popular? Não estarão os povos andinos, amazônicos, indígenas, negros, homens e mulheres dos campos e das cidades, a estampar que a América Latina não está mais disposta a suportar a barbárie, a subserviência, a iniquidade, que em nome de ''democracia'' assume de fato a postura do império, da truculência, da miséria e da indignidade?