Título: Às favas a história
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 14/05/2005, Opinião, p. A10
Em dois anos e meio de expedientes contínuos no Palácio do Planalto, o Partido dos Trabalhadores ofereceu incontáveis exemplos de notável capacidade em adaptar-se aos novos tempos. A prática garantiu-lhe dividendos na economia, uma vez que abandonou teses envelhecidas e apegou-se com fervor ao leme do realismo responsável. Em alguns momentos, contudo, em especial nas articulações políticas, os morubixabas petistas têm excedido os limites aceitáveis das mutações. Prova da perturbação programática que atinge o partido revelou-se esta semana: a guinada em relação à chamada verticalização - a obrigatoriedade de as alianças para a Presidência da República serem repetidas nos estados.
Convém explicitar os três tempos dessa história. Quando aprovada por resolução do Tribunal Superior Eleitoral, e confirmada por decisão do Supremo Tribunal Federal, na véspera da corrida presidencial 2002, a medida provocou enfática reação do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva. ''É uma aberração, uma decisão descabida'', atacou Lula, seguido do então deputado José Genoino: ''É uma piada. O voto vinculado acabou junto com a ditadura''. O hoje ministro José Dirceu completou a trinca incomodada: ''É um casuísmo'', definiu.
Depois da eleição, já habituado aos vistosos gabinetes do Planalto, a cúpula petista mudou de opinião. Percebeu que o partido acabou favorecido pelas novas regras em diversos estados. Até a semana passada, tal convicção se manteve. Ruiu após o presidente Lula fechar acordo com o PMDB visando à reeleição em 2006. Os aliados preferenciais do PT prometeram apoio ao presidente no próximo ano somente se a verticalização for abaixo. Por isso, os petistas votaram pelo fim das regras atuais na Comissão de Constituição e Justiça.
O PMDB - apoiado pela maioria dos 18 partidos com representação no Congresso - quer autonomia para costurar alianças nos estados. Ao PT tem interessado a coligação nacional das duas legendas. A combinação dos interesses estimulou a evidência dos pontos de vista de ocasião, que exacerba a máxima do ex-governador mineiro Magalhães Pinto, segundo a qual ''política é como nuvem: você olha e vê um formato, mas quando olha de novo já vê outro''.
O axioma tem servido, infelizmente, para um constrangedor vale-tudo na salada partidária brasileira, que esmaece a já desbotada coloração das agremiações. Petistas, ao contrário, sempre se vangloriaram de ser uma exceção num mar de indefinições programáticas que constitui o nosso sistema partidário. Em muitos casos, a soberba confirmou-se na prática. Não é o caso. No afã de se manter no poder, conduzido principalmente pela sobrevivência eleitoral, o partido vem se apequenando. Ao agir assim, ignora a sensatez e esmaga a própria história.
Sugere-se-lhe um lema como solução para explicar os devaneios programáticos e as práticas oportunistas: ''Mudar o estilo de pensar é a única coisa que conta naquilo que fazemos'', giro de linguagem proposto na primeira metade do século 20 pelo filósofo austríaco Ludwig Wittgeinstein.
O PT errou em 2002. Repete o equívoco agora. A imposição de restrições para alianças constitui uma norma saneadora, pois acaba com a pouca vergonha das infidelidades partidárias, com múltiplos casamentos nos estados ao sabor das conveniências eleitorais. Oferece coerência ao sistema. Convencido pelo seu entorno de que vale a pena derrubar a verticalização em nome do projeto da reeleição, os petistas compactuam com um retrocesso institucional-político para o país. Mais: submetem-se a um partido, o PMDB, cuja motivação é garantir liberdade para suas traficâncias nos estados - do Piauí de Mão Santa a São Paulo de Quércia e Michel Temer. De um jeito ou de outro, o PT arrisca-se a ser abandonado no altar.
As regras atuais podem não ter resolvido a bagunça partidária brasileira. Por essa razão, convém rediscuti-las - ampliando o escopo da legislação e aperfeiçoando o sistema - no contexto da reforma política, tão imprescindível quanto adiada. A alteração das regras de criação das legendas e a identificação de mecanismos mais eficazes de controle, como a fidelidade partidária, o financiamento público de campanha e o sistema eleitoral por listas, tudo somado poderá resultar em avanços institucionais para o país. Para tanto, não é preciso rasgar a ficha de filiação à sensatez. Assim têm agido os partidos brasileiros, agora sob o comando do PT.