Título: Objetivos previstos foram alcançados
Autor: Flávio Leão Pinheiro
Fonte: Jornal do Brasil, 15/05/2005, Internacional / Além do fato, p. A8

As opiniões de acadêmicos, jornalistas, diplomatas e políticos sobre a Cúpula América do Sul - Países Árabes, realizada em Brasília durante a semana, variaram entre a desaprovação precipitada e a exaltação imprudente, informando menos uma análise objetiva do que o posicionamento político dos opinantes. No final das contas, o debate estéril resumiu-se à questão de definir o encontro de cúpula como comercial ou político. Sem pretender fazer um juízo de valor a respeito do evento em si, que acredito ser algo precipitado, creio que a cúpula serviu para retratar a quantas anda a política externa do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Também funcionou para avaliar a coerência no que diz respeito às prioridades já perceptíveis no discurso de posse do ministro Celso Amorim, em janeiro de 2003: a diversificação do comércio, as relações com o Eixo do Sul, com os EUA e com a América do Sul.

No aspecto comercial, a cúpula se insere na diretriz esboçada pelo governo que visa à abertura de novos mercados. Desde a posse, em 2003, o presidente Lula visitou a África, a Ásia e o próprio Oriente Médio ¿ a diretriz era clara.

Ao mesmo tempo, à época que o PT assumiu a Presidência da República, três negociações estavam em andamento: Mercosul-União Européia (UE), a Alca e a Rodada de Doha da Organização Mundial de Comércio (OMC) ¿ os chamados três trilhos da diplomacia comercial.

A percepção era de que o Brasil, além de buscar mercados inexplorados, poderia obter ganhos satisfatórios negociando nos três campos. Passados dois anos e meio de governo, o que resta claro é a paralisação da Alca e das negociações Mercosul-UE e o instável, e por vezes incerto, andamento das negociações comerciais multilaterais via OMC. Tendo visto o congelamento ou a morosidade dos três trilhos, ao governo restou a possibilidade de buscar novos mercados.

Os países árabes reunidos em Brasília têm Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 815 bilhões, comprando do mundo inteiro, aproximadamente, US$ 250 bilhões. Diante do que representam para o Brasil hoje em dia, cerca de 5% de nossas exportações, do ponto de vista comercial, a relação pode ser promissora. Além do mais, os países da América do Sul vislumbram os investimentos de petrodólares para financiar os pesados projetos de infra-estrutura regionais.

No campo das relações Sul-Sul, o encontro também se mostra coerente com as diretrizes da política externa petista. Em junho de 2003, o Brasil se aproximava da Índia e da África do Sul com o objetivo claro de uma concertação entre os países do Sul. O resultado foi criação do India-Brazil-South Africa Dialogue Forum (IBSA).

A Cúpula América do Sul - Países Árabes, nesse sentido, tem, entre as suas metas, forte viés político, apesar de o governo enfatizar, nos últimos dias, o caráter estritamente econômico/comercial do encontro. Se, por um lado grande parte dos árabes querem mais apoio e aliados estratégicos para a cruzada contra o imperialismo americano, por outro lado, o Brasil busca aliados para maximizar a influência do país no cenário internacional. É nesse contexto, por exemplo, que se insere a demanda brasileira ao assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU).

No que diz respeito à relação bilateral com os Estados Unidos, a cúpula também não trouxe muitas novidades. À primeira vista, a Declaração de Brasília, como todo o encontro, poderia ser interpretada como uma afronta aos EUA, pois deixou de lado princípios básicos da diplomacia americana, ao relativizar o conceito de democracia e ao tratamento dispensado ao terrorismo, sem falar, também, na defesa veemente dos interesses da Autoridade Palestina.

Não se pode esquecer, no entanto, que a Casa Branca já estava a par do encontro. O ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, quando esteve em Washington, além de discutir a questão cubana e venezuelana com a secretária de Estado Condoleezza Rice, abordou a cúpula árabe no Brasil. Na visita de Rice ao Brasil, no mês passado, o tema da reunião também esteve na pauta.

Por fim, faz-se necessário última observação: apesar do tom da Declaração de Brasília, o presidente Lula proferiu discurso reverenciando os valores democráticos, em clara tentativa de ponderar o teor do que trazia o documento oficial. Diante disto, pode-se dizer que as relações com Washington vão bem, obrigado. Mesmo porque, nos últimos tempos, o Brasil já se posicionou diversas vezes em oposição aos EUA em tópicos sensíveis, como a invasão ao Iraque, a questão da Palestina e a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), e nem por isso o governo Bush percebe o Brasil como ameaça; muito pelo contrário.

Quando o assunto é América do Sul, no entanto, a questão é um pouco mais complexa. Desde o início, nas negociações preparatórias, o Brasil se mostrou o único interlocutor, fato que, logicamente, já despertava as desconfianças dos vizinhos-parceiros. A insistência e freqüência com que o Brasil demanda o assento permanente no Conselho de Segurança da ONU é outro fator desestabilizador. Soma-se a esses dois fatos, a morosidade com que os projetos de integração física regional, tão discutidos no ano de 2003 e 2004, e que aparentemente seriam financiados pelo BNDES, pela Confederação Andina de Fomento (CAF) e pelo Banco Inter-americano de Desenvolvimento (BID), são tocados. Esses fatores associados geram mal-estar nos vizinhos. Eles percebem que o país catalisador do processo de integração sul-americana, o Brasil, age às vezes de maneira precipitada, dando a entender, por vezes, que quer se aproveitar do respaldo regional para atingir metas estritamente de caráter nacional.

Por outro lado, ao não avistar sinais concretos de ganhos gerados pelo processo de integração, tendem a, naturalmente, afastarem-se, pois, passam a se perceber como meros coadjuvantes. É diante de eventos como a Cúpula América do Sul - Países Árabes, portanto, que se pode perceber o quanto é difícil e custoso o exercício do papel de liderança regional. Ao mesmo tempo em que o país almeja conduzir o processo de integração, depara-se com metas nacionais. Por isso que não se pode esquecer a menção feita pelo ministro Celso Amorim em seu discurso de posse: ¿no governo Lula, a América do Sul será nossa maior prioridade¿.