Título: Informação vence tradição violenta
Autor: Olivia Hirsch
Fonte: Jornal do Brasil, 15/05/2005, Internacional, p. A12

Programa de ONG senegalesa usa diálogo, música e dança para eliminar circuncisão feminina em 30% das vilas do país

A tradição começou há mais de 2 mil anos. Para algumas comunidades de 26 países da África, uma mulher para ser considerada digna, pura e fiel deve ter o clitóris retirado na infância. No entanto, a prática que atinge 2 milhões de meninas a cada ano no continente e lhes pune a sexualidade, já dá sinais de que pode estar chegando ao fim.

No pequeno Senegal, o trabalho desenvolvido por uma ONG local já levou 1.527 vilarejos - 30% das comunidades que praticam o ritual no país - a anunciarem publicamente que não são mais adeptos da mutilação genital feminina (FGM, na sigla em inglês). A efetividade do programa levou inclusive o Fundo das Nações Unidas para a Infância e a Adolescência (Unicef) a adotá-lo como modelo para o continente.

- O mais importante do projeto é que busca mudar uma convenção social sem usar um modelo negativo - avalia Mamadou Wane ao JB, representante da Unicef no Senegal. - Não se julga a prática, dizendo que é ruim ou que as pessoas não devem fazê-la. Pois os pais a seguem pensando no futuro de suas filhas, para que se casem um dia.

De fato, o foco do programa não é o combate à mutilação genital feminina, mas o desenvolvimento de questões como direitos humanos, meio ambiente, educação e saúde. O fim da prática, que é anunciado publicamente em uma grande festa, é apenas uma consequência.

- Na África, as decisões são tomadas por todos os membros das famílias, incluindo tios, primos, avós. Por isso, trabalhamos com várias comunidades e elas chegam à conclusão de interromper a prática juntas - conta por telefone a americana Molly Melching, diretora da Tostan, que vive no Senegal há mais de 20 anos. - Haverá uma declaração pública no domingo [hoje]que incluirá 43 vilas. É a mesma família que está na diáspora, há pessoas em Dakar, outras na Gâmbia. Todas virão para anunciar que tomaram a decisão de abandonar a prática de FGM.

Para que a comunicação flua com mais facilidade, os funcionários da ONG que trabalham nas comunidades - onde passam dois ou três anos - são do mesmo grupo étnico e compartilham do dialeto da população local. A informação é passada por meio de fotos, teatro, música, dança e debates.

- Tentamos provocar as pessoas para que cheguem a um consenso sobre quais são as metas do grupo e como alcançá-las - explica Melching. - Por exemplo, numa discussão sobre direitos humanos, levantamos o questionamento sobre o que era violência. Uma mulher afirmou que era quando o marido arrumava uma terceira esposa sem ter como sustentá-la, outra disse que era quando uma menina sofria FGM e sangrava até a morte, uma terceira afirmou que era o fato de o marido se negar a dar dinheiro para a alimentação. Ou seja, foi a própria comunidade que trouxe a informação e a partir daí discutimos o que se podia fazer para acabar com a violência lá.

A diretora da ONG lembra um episódio que ocorreu em uma das vilas por onde passou o programa. Uma das mulheres fora agredida pelo marido. Grávida, ela procurou ajuda policial, mas recebeu a resposta de que nada poderia ser feito, pois tratava-se de uma questão doméstica. Juntas, as mulheres do vilarejo organizaram uma marcha e o protesto foi divulgado na rádio local.

- Os homens ficaram morrendo de vergonha e a partir deste dia nunca mais foi registrado qualquer caso de violência doméstica na comunidade. Houve uma mudança de hábito - conta Melching.

O projeto, que leva em média três anos e custa US$ 10 mil por vila, já está sendo aplicado em Burkina Faso, Guiné e Mali. A próxima meta é implantá-lo na Somália e no Sudão, onde quase 100% das mulheres são circuncidadas.

Mas Melching está confiante. Ela lembra que a prática chinesa do Pé de Lotus, que consistia em enfaixar os pés das crianças para que ficassem até oito centímetros mais curtos, foi erradicada em poucos anos.

- Uma vila chegou à conclusão de que a prática não era saudável, de que prejudicava as mulheres. Eles então fizeram uma declaração pública e acabaram com a tradição em apenas um dia.