Título: Emir Sader
Autor: Para um mundo multipolar
Fonte: Jornal do Brasil, 15/05/2005, Outras OPiniões, p. A15

O Brasil tem hoje a mais importante política externa da sua história. Suas contribuições para a construção de um mundo multipolar são as de maior peso, constituindo no eixo fundamental de articulação de espaços alternativos à hegemonia unipolar estadunidense, com um tipo de política que deixaria orgulhosos a Santiago Dantas e a Ítalo Zappa - dois dos inspiradores dessa política.

Projetos de integração da América do Sul, o Merocosul e a Comunidade Sul-americana de Nações constroem - apesar de todas as suas dificuldades -, uma dinâmica de integração regional que promove a criação de um espaço de autonomia em relação ao projeto estadunidense da Alca. O processo de articulação das políticas sociais, as de energia e as políticas econômicas, levadas a cabo junto com os presidentes da Argentina e da Venezuela, fortalecem esse processo.

Os acordos do Brasil em outras esferas do sul do mundo vão também nessa direção. O Grupo dos 20, organizado a partir da reunião da OMC em Cancun, congregando a países como a China, a Índia, a África do Sul, a Argentina, o México, o próprio Brasil, entre outros, representou a reaparição de uma aliança ampla nessa região do mundo, depois de praticamente sua desaparição desde 20 anos. De forma mais direta, a política externa brasileira promove uma ponte com a África do Sul e a Índia.

Os acordos - ainda que difíceis - do Mercosul com a União Européia contribuem para a multiplicação de intercâmbios diversificados entre regiões diferentes do mundo. A recente reunião dos governos da América do Sul com os dos países árabes completa uma redefinição das vias de intercambio, na contramão do que Washington desejaria. Daí o rotundo não que ouviu a risonha Condoleeza Rice em Brasília, quando veio solicitar participação nessa reunião. Não contente com a sistemática e feroz pressão que fez para que os governos amigos dos EUA no mundo árabe não prestigiassem a reunião - contando com o apoio de setores da imprensa, apressados em afirmar o fracasso do evento -, o governo Bush queria estar presente, talvez para controlar em que medida cada país toma atitudes autônomas em relação ao que lhes transmitiu Washington.

Nenhuma outra região do mundo contribui tão firmemente para um mundo multipolar do que a América Latina, com o Brasil levando a voz cantante. A Europa, embora construindo uma moeda alternativa ao dólar, não consegue unidade suficiente em sua política externa, com vários governos cedendo às pressões de Washington. Nem a China, nem a Índia - outros gigantes do Sul do mundo - desenvolvem, infelizmente, políticas similares em suas regiões, nem a África do Sul o faz.

Enquanto isso os EUA, que pretendem ocupar todos os espaços de ação no mundo, buscando evitar não apenas o surgimento de rivais à sua altura, mas até mesmo lideranças regionais, sofrem, na América Latina, um revés atrás do outro. Apenas nas últimas semanas, o governo Bush teve que contabilizar a perda do governo aliado do Equador, substituído por outro que pretende tirar a base militar de Manta do país, impedindo que o país siga funcionando como retaguarda para a guerra na Colômbia. Teve também que enfrentar a derrota de seu candidato à secretaria geral da OEA, pela primeira vez, assim como viu fracassar a operação para tentar impedir a candidatura do favorito às eleições presidenciais do México, o governador do Distrito Federal, Lopez Obrador.

A possibilidade de vitória de Lopez Obrador permitiria que a atual frente de centro-esquerda na América Latina pudesse incluir o México, passando pela Venezuela, por Cuba, pelo Brasil, pela Argentina, pelo Uruguai e talvez pela Bolívia. Estariam dadas as melhores condições jamais existentes para um processo de integração continental. A luta contra o mundo unipolar - condição da hegemonia imperial belicista dos EUA - terá dado um passo importante, justamente no nosso continente, que um dia foi zona de dominação privilegiada desse país e, mais recentemente, laboratório de experiências neoliberais. Ou talvez exatamente por isso.