Título: Alternativa pós-capitalista
Autor: Frei Betto
Fonte: Jornal do Brasil, 15/05/2005, Outras Opiniões, p. A15

Por que acreditar que ¿um outro mundo é possível¿? Por que outro, se já temos este ¿ capitalista, neoliberal e globocolonizador? Este é o melhor dos mundos. Exceto para 2/3 da população mundial que vivem abaixo da linha da pobreza, segundo o Banco Mundial. Habitam o nosso planeta, hoje, 6,1 bilhões de pessoas. Só 2,1 bilhões desfrutam de condições dignas de vida. Os outros 4 bilhões padecem: 2,8 bilhões vivem abaixo da linha da pobreza, o que significa que não dispõem de renda mensal equivalente a mais de US$ 60. E 1,2 bilhão vivem abaixo da linha da miséria, porque possuem renda mensal inferior ao equivalente a US$ 30.

A economia mundial está em desaceleração. O dólar perde valor, a desigualdade entre os países se acentua. Nesse mar de pobreza é ilusão esperar uma tábua de salvação neoliberal que venha das ilhas de opulência. Os muros dos campos de concentração da renda são altos demais para permitir a entrada da multidão de excluídos. Mas são demasiadamete frágeis para impedir o risco de implosão. Há que buscar uma alternativa ao atual modelo econômico, antes que o desespero fomente ainda mais o terrorismo. E esta alternativa passa, necessariamente, por mudança de valores, e não apenas de mecanismos econômicos.

É no mínimo curioso constatar como a economia ¿ que se pretende científica e laica ¿ utiliza categorias religiosas, como a ¿mão invisível¿ de Adam Smith. É o caso do mercado, que parece ter sentimentos humanos, segundo os comentários de quem considera que, diante de tal fato, ele ¿reagiu bem¿ ou ¿retraiu-se¿. A ele pode-se aplicar, na ótica neoliberal, o axioma dogmático: fora do mercado não há salvação.

Talvez se deva a esse fetiche religioso o fato de a maioria dos shopping-centers possuir linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas. E não se pode entrar ali senão com roupa de missa de domingo, percorrendo-se os amplos claustros ao som do gregoriano pós-moderno, para contemplar capelas que exibem veneráveis objetos de consumo, acolitados por belíssimas sacerdotisas. Sente-se no céu quem pode comprar à vista; no purgatório, quem paga a prazo ou entra no cheque especial; no inferno, quem se sabe excluído do mercado. Na saída, todos degustam a ¿eucaristia¿ pós-moderna do mesmo hambúrguer e do mesmo suco sabor isopor.

Se o mundo roda em torno da economia e a economia gira em torno do mercado, isso significa que este, revestido de caráter idolátrico, paira acima dos direitos das pessoas e dos recursos da Terra. Apresenta-se como um bem absoluto. Decide a vida e a morte da humanidade. Assim, os fins ¿ vida e felicidade humanas ¿ ficam subordinados à acumulação privada das riquezas. Não importa que a riqueza de uns poucos signifique a pobreza de muitos. O paradigma do mercado são os cifrões de contas bancárias e não a dignidade das pessoas.

Há, pois, uma inversão de valores. Os produtos passam a ser sujeitos e as pessoas objetos. É o produto que imprime valor a quem o possui. Assim, os despossuídos carecem de valor e, descartados do jogo econômico, são atraídos a reverenciar a pujança dos privilegiados. Agora a referência é ¿Consumo, logo existo¿.

A ostentação dos miliardários funciona como um ícone em que se projetam aqueles que, excluídos do festim, ao menos saboreiam virtualmente as migalhas psicológicas caídas da mesa dos abastados. Quem sabe, um dia, eu poderei ser um deles¿ Sonho que facilmente se transforma em revolta.

O princípio supremo da cidadania mundial é o direito de todos à vida e, como enfatiza Jesus, ¿vida em plenitude¿ (João 10, 10). Como tornar isso viável? Qualquer alternativa deverá fugir dos extremos que penalizaram parcela significativa da humanidade no século XX: o livre mercado e a planificação centralizada. Nem um nem outro subordina a economia aos direitos do cidadão. O mercado afunila oportunidades, concentrando a riqueza em mãos de poucos. A planificação centralizada, embora exercida em nome do povo, de fato o exclui das decisões. O mercado agrava o estado de injustiça. A planificação centralizada restringe o exercício da liberdade.

Para conciliar mercado e planificação, urge que a lógica econômica abandone o paradigma da acumulação privada para recuperar o do bem comum, de modo que a cidadania se sobreponha ao consumo e os direitos sociais da maioria aos privilégios ostentatórios da minoria.

A recente conjuntura do Equador demonstrou que a paciência do povo tem limites. Não adianta o FMI insistir na pretensão de saber o que é melhor para a América Latina. Os índices sociais comprovam que seu receituário está longe de ser o melhor para a maioria da população. Hoje, há mais de 200 milhões de excluídos em nosso Continente.

Enquanto a política não for ditada pelos imperativos sociais e deixar-se direcionar pela economia de ¿livre¿ mercado, os índices financeiros continuarão a merecer mais valor que a qualidade de vida das pessoas. O que significa uma inversão total dos princípios éticos.

Frei Betto, autor de Típicos Tipos ¿ perfis literários (A Girafa), entre outros livros, escreve mensalmente para o JB.Por que acreditar que ¿um outro mundo é possível¿? Por que outro, se já temos este ¿ capitalista, neoliberal e globocolonizador? Este é o melhor dos mundos. Exceto para 2/3 da população mundial que vivem abaixo da linha da pobreza, segundo o Banco Mundial.

Habitam o nosso planeta, hoje, 6,1 bilhões de pessoas. Só 2,1 bilhões desfrutam de condições dignas de vida. Os outros 4 bilhões padecem: 2,8 bilhões vivem abaixo da linha da pobreza, o que significa que não dispõem de renda mensal equivalente a mais de US$ 60. E 1,2 bilhão vivem abaixo da linha da miséria, porque possuem renda mensal inferior ao equivalente a US$ 30.

A economia mundial está em desaceleração. O dólar perde valor, a desigualdade entre os países se acentua. Nesse mar de pobreza é ilusão esperar uma tábua de salvação neoliberal que venha das ilhas de opulência. Os muros dos campos de concentração da renda são altos demais para permitir a entrada da multidão de excluídos. Mas são demasiadamete frágeis para impedir o risco de implosão. Há que buscar uma alternativa ao atual modelo econômico, antes que o desespero fomente ainda mais o terrorismo. E esta alternativa passa, necessariamente, por mudança de valores, e não apenas de mecanismos econômicos.

É no mínimo curioso constatar como a economia ¿ que se pretende científica e laica ¿ utiliza categorias religiosas, como a ¿mão invisível¿ de Adam Smith. É o caso do mercado, que parece ter sentimentos humanos, segundo os comentários de quem considera que, diante de tal fato, ele ¿reagiu bem¿ ou ¿retraiu-se¿. A ele pode-se aplicar, na ótica neoliberal, o axioma dogmático: fora do mercado não há salvação.

Talvez se deva a esse fetiche religioso o fato de a maioria dos shopping-centers possuir linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas. E não se pode entrar ali senão com roupa de missa de domingo, percorrendo-se os amplos claustros ao som do gregoriano pós-moderno, para contemplar capelas que exibem veneráveis objetos de consumo, acolitados por belíssimas sacerdotisas. Sente-se no céu quem pode comprar à vista; no purgatório, quem paga a prazo ou entra no cheque especial; no inferno, quem se sabe excluído do mercado. Na saída, todos degustam a ¿eucaristia¿ pós-moderna do mesmo hambúrguer e do mesmo suco sabor isopor.

Se o mundo roda em torno da economia e a economia gira em torno do mercado, isso significa que este, revestido de caráter idolátrico, paira acima dos direitos das pessoas e dos recursos da Terra. Apresenta-se como um bem absoluto. Decide a vida e a morte da humanidade. Assim, os fins ¿ vida e felicidade humanas ¿ ficam subordinados à acumulação privada das riquezas. Não importa que a riqueza de uns poucos signifique a pobreza de muitos. O paradigma do mercado são os cifrões de contas bancárias e não a dignidade das pessoas.

Há, pois, uma inversão de valores. Os produtos passam a ser sujeitos e as pessoas objetos. É o produto que imprime valor a quem o possui. Assim, os despossuídos carecem de valor e, descartados do jogo econômico, são atraídos a reverenciar a pujança dos privilegiados. Agora a referência é ¿Consumo, logo existo¿.

A ostentação dos miliardários funciona como um ícone em que se projetam aqueles que, excluídos do festim, ao menos saboreiam virtualmente as migalhas psicológicas caídas da mesa dos abastados. Quem sabe, um dia, eu poderei ser um deles¿ Sonho que facilmente se transforma em revolta.

O princípio supremo da cidadania mundial é o direito de todos à vida e, como enfatiza Jesus, ¿vida em plenitude¿ (João 10, 10). Como tornar isso viável? Qualquer alternativa deverá fugir dos extremos que penalizaram parcela significativa da humanidade no século XX: o livre mercado e a planificação centralizada. Nem um nem outro subordina a economia aos direitos do cidadão. O mercado afunila oportunidades, concentrando a riqueza em mãos de poucos. A planificação centralizada, embora exercida em nome do povo, de fato o exclui das decisões. O mercado agrava o estado de injustiça. A planificação centralizada restringe o exercício da liberdade.

Para conciliar mercado e planificação, urge que a lógica econômica abandone o paradigma da acumulação privada para recuperar o do bem comum, de modo que a cidadania se sobreponha ao consumo e os direitos sociais da maioria aos privilégios ostentatórios da minoria.

A recente conjuntura do Equador demonstrou que a paciência do povo tem limites. Não adianta o FMI insistir na pretensão de saber o que é melhor para a América Latina. Os índices sociais comprovam que seu receituário está longe de ser o melhor para a maioria da população. Hoje, há mais de 200 milhões de excluídos em nosso Continente.

Enquanto a política não for ditada pelos imperativos sociais e deixar-se direcionar pela economia de ¿livre¿ mercado, os índices financeiros continuarão a merecer mais valor que a qualidade de vida das pessoas. O que significa uma inversão total dos princípios éticos.

Frei Betto, autor de Típicos Tipos ¿ perfis literários (A Girafa), entre outros livros, escreve mensalmente para o JB.