Título: Democracia, um debate ideológico
Autor: Milton Temer
Fonte: Jornal do Brasil, 17/05/2005, Outras Opiniões, p. A11

Defesa de um conceito abstrato, no contexto internacional atual, pode ser

A questão democrática voltou à pauta do debate político, a partir da resolução conclusiva da Cúpula América do Sul-Países Árabes. A ausência do conceito no texto final foi o pretexto para que parcela importante dos analistas deixasse de registrar o encontro como episódio de grande importância na atual conjuntura internacional. Por razões claramente ideológicas, tentaram desqualificar o evidente fortalecimento das resoluções da ONU, e de sua ação multilateral efetiva, afirmada no documento.

Foi - agrade ou não aos apóstolos da inevitabilidade da nova hegemonia imperialista mundial - uma iniciativa importante dos países, ditos em desenvolvimento. Resultou num eficaz contraponto às movimentações perigosas do governo Bush, na América Latina e no Oriente Médio, e isto ficou claro na forma apenas discreta com que o Departamento de Estado conseguiu reagir.

Antes de priorizar, no conjunto da obra, a ausência de qualquer referência ao compromisso com a questão democrática, seria necessário, no entanto, definir a que democracia se referem os críticos, mais ou menos histriônicos, da Cúpula.

Existe, por acaso, um modelo universal, único em seus parâmetros, de regime democrático? Para Condeleeza Rice, que fala pelo Império, democracia não existia no Iraque, do período Saddam Hussein, porque lá não ser realizavam eleições. Existe, agora, onde o presidente do país, produto de uma farsa de pleito eleitoral, se obriga a chegar ao Brasil sob a guarda de mercenários americanos, contratados pela própria CIA.

Mas, quando da passagem pelo Brasil, a mesma Rice disse não se poder afirmar que ela exista na Venezuela, da revolução bolivariana, porque ''democracia não pode ser medida só por existência de processos eleitorais''. Havia que considerar a ''garantia de conquistas sociais'' permanentes como valores referenciais. Do que, aliás, mesmo o mais radical esquerdista não tem por que discordar.

Com qual das avaliações ficamos, então? Porque, por todas as condicionantes de Condoleeza, a Venezuela está certamente muito mais próxima de uma legítima valoração democrática do que boa parte dos aliados incondicionais do governo americano em todo o mundo. O presidente Chávez, que não dá um só passo decisivo sem submetê-lo a crivo da população, não só estabeleceu que o petróleo venezuelano deixaria de ser mercadoria de comércio para proveito exclusivo das empresas petrolíferas norte-americanas, como passaria a se constituir reserva financeira para um novo modelo de ordem econômica. Um modelo voltado para os pobres que nunca se beneficiaram da riqueza maior do país - os negros e índios, principalmente, ou os mestiços, como Chávez -, com a conta sendo paga pelos que se locupletaram nos privilégios ao grande capital dos governos ''democráticos'' anteriores.

Mas o exemplo da Venezuela não resiste ao essencial, na avaliação que realmente conta para o Departamento de Estado: afirma soberania; recusa-se a ser aliado incondicional. Não se submete à condição boneco de ventríloquo, na defesa dos interesses imperialistas do governo Bush. Por isso é colocada na relação dos países ''desestabilizadores dos processos democráticos'' em nosso continente.

Uribe, com seus cúmplices paramilitares, na Colômbia; o desmoralizado Toledo, no Peru; o suspeitíssimo Karzai, no Afeganistão; ou os califas medievais da Arábia Saudita, sócios nas empresas petrolíferas dos Estados Unidos; estes seriam exemplos de democratas, para a embaixadora itinerante do novo fundamentalismo ianque. Juntamente com o presidente Lula - o que não é nada lisonjeiro, convenhamos.

É para isso, portanto, que devem atentar os que se apressaram na desqualificação desta iniciativa do governo Lula, através da eficiência do Itamaraty. Defesa de um conceito abstrato de democracia, no contexto internacional atual, pode ser apenas pretexto para o exercício da hegemonia imperialista.

Terror contínuo - Na região conflagrada da Baixada Fluminense, Sonely Antunes Arldt, liderança sindical dos professores municipais de Caxias, está sob ameaça de morte, por sua ação militante. O aviso foi dado pelo próprio Batalhão da PM, que recebeu a denúncia por telefonema anônimo, e já cuida de sua segurança nas manifestações de rua. Mas é pouco. Governo do Estado e Polícia Federal se obrigam a entrar no circuito.