Título: O Cade, a Vale e o interesse nacional (II)
Autor: Léo de Almeida Neves*
Fonte: Jornal do Brasil, 17/05/2005, Economia & Negócios / Além do fato, p. A18
A Cia. Vale do Rio Doce merece tudo da nação, porém tem o dever moral de lhe ser fiel e retribuir-lhe o muito que recebeu. Ficou fácil aos adquirentes da ¿jóia da coroa¿ das estatais conduzir a empresa, muito bem estruturada técnica e financeiramente e com mercados compradores cativos implorando pela ampliação dos fornecimentos, notadamente a China. Em 2005, os felizardos acionistas da Cia. Vale do Rio Doce vão ser contemplados com a bolada de R$ 3,230 bilhões em juros sobre capital próprio (dividendos). Pelo curso de sua história, é inquestionável que a Vale jamais poderá desnacionalizar-se, isto é, seu controle acionário ser transferido a estrangeiros, porquanto a empresa ¿ pelo seu passado público ¿ tem compromissos irremovíveis com o povo brasileiro. Essa diretriz de manter a Vale atrelada à bandeira nacional seria facilmente garantida não fosse o neoliberalismo do governo Fernando Henrique Cardoso, que alienou em 2001, na Bolsa de Nova York, 31,17% das ações ordinárias com direito a voto que a União ainda detinha na controladora Valepar, o que lhe assegurava o direito de eleger dois membros do conselho de administração.
Embora acumule muitas conquistas, nem tudo são flores na atuação da Vale privatizada. É visível sua omissão no campo mineral na vastidão do território brasileiro: desativou a Docegeo e não se tem notícia das minas de ouro de Corpo Alemão, Igarapé-Bahia e Serra Leste, nesta associado ao valorizado paládio, usado em ligas industriais. Enquanto isso, ela alardeia que está atuando em pesquisa e desenvolvimento de minérios em 11 países de quatro continentes e faz silêncio sobre o contrato de risco assinado com o BNDES em 2 de abril de 1997, prevendo aplicação em conjunto de R$ 400 milhões, em sete anos, para pesquisar 104 pontos e 385 áreas onde a ex-estatal tinha achado minérios, mas faltava dimensionar as jazidas.
É inconcebível e não deve repetir-se a tentativa da Vale de adquirir da multinacional Brascan 52% do controle acionário da canadense Noranda por supostos US$ 3 bilhões. Explorar carvão em Moçambique ou na China e fosfato no Peru, produtos que o Brasil importa, está bem justificável, mas querer globalizar-se pela simples ambição de lucro, canalizando para fora dinheiro brasileiro, não deve ser permitido.
Já defendi e reitero a tese de que a Vale deveria celebrar ¿acordo de cavalheiros¿ com o Poder Executivo e colaborar no combate à inflação, comercializando minério de ferro com as siderúrgicas nacionais, sem aplicar os percentuais de aumento de preços do mercado mundial. A redução da margem de resultado seria mínima e ela quitaria pequena parcela da dívida ética contraída com o povo brasileiro pelos 56 anos (1941 a 1997, da criação até a privatização) de sacrifícios para construir esse monumento empresarial.
De outro prisma, há que preservar-se a posição da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), também criada por Getúlio Vargas e construída com equipamentos e empréstimos norte-americanos, por ordem do presidente Franklin Delano Roosevelt em contrapartida à participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial.
Abstraída a estranha negociação frustrada de fusão com a Corus (metalúrgica anglo-holandesa), a CSN tem planos de investimentos somente no Brasil e é justa sua intenção de tornar-se exportadora de minério com a expansão extrativa da fabulosa jazida de ferro Casa de Pedra, desamarrando-se esdrúxula cláusula de preferência de compra com a Vale, quando do descruzamento das ações das duas ex-estatais.
De outro lado, parece-me justo que a Vale mantenha sua participação nas ferrovias Minas-Vitória e MRS Logística, porém assegurando à CSN e ao Grupo Gerdau o transporte de suas produções de minério mediante critérios e custo de tarifas prefixados.
As decisões da Secretaria de Acompanhamento Econômico (SAE), da Secretaria de Direito Econômico (SDE) e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) têm de focar em primeiro plano o benefício econômico para o Brasil e, depois, as conveniências dos litigantes. Em qualquer controvérsia, impõe-se colocar na balança se a empresa objeto de julgamento está investindo em projetos aqui ou deslocando capitais para o exterior, apenas visando lucro e captação de empréstimos a taxas mais baixas. É instigante o processo pendente de apreciação no Cade do cruzamento das ações da AmBev com a cervejaria belga Interbrew para formar a InBev, maior cervejaria do mundo em volume.
Como é sabido, o Cade, igual a outras iniciativas importantes em nosso país, foi proposto por Getúlio Vargas, sugestão do então ministro da Justiça, Agamenon Magalhães, tendo por razão precípua coibir os trustes estrangeiros de dumping de preços, domínio de mercado e outros procedimentos que poderiam subjugar e sufocar companhias nativas. Tornou-se concreta a existência do Cade pela Lei n 4.137, de 10.09.1962, no período parlamentarista de João Goulart; seu arcabouço jurídico foi reformulado pela Lei n 8.864, de 19.06.1994.
Anuncia-se agora novo formato legal do Cade com a reestruturação do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, em fase de elaboração e consulta pública na órbita do Poder Executivo. O enfrentamento Vale-CSN-Gerdau, pela magnitude dos contendores, exalta a relevância do problema e aponta como imperativo que, além e acima da ¿defesa da concorrência¿, o órgão de julgamento precisa prioritariamente identificar e proteger os superiores interesses econômicos da nação e do povo brasileiro.
*Ex-deputado federal e ex-diretor do Banco do Brasil; autor dos livros ¿Destino do Brasil: Potência Mundial¿ e ¿Vivência de Fatos Históricos¿