Título: As águas da discórdia
Autor: MAURO SANTAYANA
Fonte: Jornal do Brasil, 13/05/2005, País / Coisas da Política, p. A2

Apressa-se o governo em iniciar as obras de transposição do Rio São Francisco. Os defensores da obra querem o fato consumado, antes que haja reação maior das populações interessadas. Os que fazem ponderações contra o dispendioso projeto são vistos como egoístas insensíveis à miséria do Nordeste e partidários do atraso. É fácil recorrer ao maniqueísmo: difícil é examinar questões dessa natureza sem paixão. Em primeiro lugar, se a obra tem o propósito de beneficiar todo o Nordeste, é estranho que contra ela se levante a opinião pública de alguns estados da região. Se o objetivo é favorecer só algumas áreas, convinha examinar a relação entre o custo e o benefício do projeto de forma serena e objetiva. Técnicos respeitáveis o contestam, tanto do ponto de vista do custo da abertura dos canais, quanto da operação do sistema. Os problemas ecológicos não são menores. Segundo esses técnicos, há soluções mais baratas e menos agressivas à natureza, com a vantagem da ampla distribuição geográfica dos benefícios: poços artesianos, pequenos açudes e a recuperação dos rios, com a revitalização das nascentes e da vegetação ciliar.

Acima dessas questões técnicas e orçamentárias se encontram as de natureza política. Não pode o governo central decidir essa transposição, que afetará toda a imensa bacia, sem ouvir a população diretamente interessada. O rio nasce em Minas e recebe, até atingir a Bahia, águas de Goiás; avoluma-se com mais afluentes de Goiás, da Bahia e de Pernambuco, antes de servir, em seu trecho final, aos habitantes de Alagoas e Sergipe. Essas populações têm o direito de serem ouvidas, e o governo, o dever de ouvi-las.

A democracia, valha a obviedade, não se limita ao ato eleitoral. A administração das coisas está submetida à decisão política. Há decisões, e essa é uma delas, em que não basta a aprovação parlamentar. É necessária a anuência direta das populações atingidas, que devem ser ouvidas, separadamente, em cada um dos estados. Se houver a oposição dos eleitores de apenas um deles, o governo terá de desistir do projeto, ou estará violando o acordo federativo, com todas as graves conseqüências dessa decisão.

Certos erros do governo podem ser desfeitos, sem prejuízos irreparáveis, no mandato que se seguir. Outros, no entanto, comprometem as gerações a vir, como ocorreu em passado recente. A transposição do São Francisco é um desses atos irreparáveis, a não ser com prejuízos imensos para o povo. Sendo assim, não pode ser resultado do capricho de um ministro, nem de todo um governo. Além disso, há o risco de que venha a ser interrompida daqui a dois anos.

Não é certo que um plebiscito venha a negar a obra. Pode aprová-la. Nesse caso, tudo bem. Caberá aos contestadores aceitar o pronunciamento popular. Enquanto não houver critério melhor, prevalece, nas democracias, o da maioria. Trata-se de uma situação nova. Pela primeira vez são retiradas águas de grande bacia para outra. Quando se trata de pequenas bacias dentro de um mesmo Estado, e a obra seja decidida pelo governo local, tudo bem. Quando são muitos os estados, e a iniciativa seja da União, só o plebiscito, circunscrito aos estados ribeirinhos, poderá permiti-la.

Entre os argumentos contra a obra há alguns que estão sendo desprezados. Um deles é o de que, como tem ocorrido em quase todos os programas de combate à seca, só serão beneficiados os ricos. Sobrará água para os animais de raça e para os jardins, e continuará faltando para os sertanejos miseráveis. Haverá, sim, e de imediato, lucros fantásticos na especulação com as terras à margem dos canais - e novas cercas se erguerão entre os sedentos e as águas transpostas. Isso sem falar no lucro das empreiteiras que executarem esse colossal projeto.

Tendo sido, na formação histórica do Brasil, o rio da unidade nacional, convém evitar que o São Francisco venha a provocar a ruptura abrupta do que resta do pacto federativo.