Título: Dívida externa e corrupção
Autor: Dalmo de Abreu Dallari
Fonte: Jornal do Brasil, 07/05/2005, Outras Opiniões, p. A11

O povo brasileiro está pagando muitos milhões a empresários e agiotas estrangeiros, para amortização de empréstimos e a título de juros, sem que uma parte do dinheiro emprestado jamais tenha chegado ao Brasil ou tenha sido utilizado em benefício do povo brasileiro. Curiosamente, a grande imprensa ligada ao grande capital canta em prosa e verso o aniversário da Lei de Responsabilidade Fiscal, que é uma das máscaras nobres da irresponsabilidade social, e não mostra o mínimo interesse pela proposta de realização de uma auditoria para investigação da dívida externa, embora essa auditoria esteja prevista na Constituição.

Eis o que determina, com absoluta clareza, o artigo 26 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição brasileira: ''No prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional promoverá, através de Comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro''. A Constituição foi promulgada em 5 de Outubro de 1988 e passados mais de 15 anos ainda não foi iniciado o cumprimento dessa determinação constitucional. Tal omissão é muito grave, pois, em primeiro lugar, transmite ao povo a impressão de desapreço dos membros do Congresso Nacional pela Constituição, que é a lei maior do país. A omissão é também gravíssima porque existem sérias desconfianças de que uma parte da dívida externa é fraudulenta e envolve corrupção, sendo absurdo tirar dinheiro do povo para entregá-lo a credores duvidosos ou para acobertar corruptos, ao mesmo tempo em que necessidades essenciais do povo deixam de ser atendidas por falta de dinheiro.

Para que se perceba, desde logo, o motivo da inclusão daquele artigo 26 na Constituição, é importante lembrar que grande parte da dívida externa é herança do período de ditadura militar, quando o povo sabia muito pouco do que se fazia nas altas esferas do governo, que usavam o pretexto da segurança nacional para sonegar informações e mascarar a corrupção. Ao mesmo tempo, pondo em prática o ''desenvolvimentismo'', apregoado como sendo a filosofia política da ditadura militar, foram planejadas e contratadas grandes obras, algumas de inegável interesse público e que foram efetivamente executadas, outras simplesmente fantasiosas, meros pretextos para justificar formalmente o gasto de altíssimas somas, retiradas dos cofres públicos. Para a execução, ou simulação de execução, desses projetos, foram contratados empréstimos externos de altíssimo valor, sem que houvesse publicidade sobre os valores e as condições de tais empréstimos. Uma das coisas ditas em voz baixa, pois falar em voz alta sugerindo corrupção na esfera pública poderia ser enquadrado como crime contra a segurança nacional, é que os corretores e intermediários desses empréstimos, brasileiros e estrangeiros, recebiam comissões muito generosas.

Tendo tido acesso, naquela época, a algumas minutas de contrato de dívida externa que circulavam quase clandestinamente, examinei com especial atenção os aspectos legais e assim pude verificar que havia sobretudo duas ilegalidades naqueles contratos. Uma delas decorria do fato de que o tomador do empréstimo era, naqueles casos, uma entidade privada ou um órgão da administração indireta, mas o governo da União comparecia como avalista. Isso comprometia as finanças públicas e seria, em princípio, um acréscimo da dívida pública, o que, pela Constituição vigente, só poderia ser feito com a aprovação do Congresso Nacional. E essa aprovação nunca foi solicitada. Outro ponto ilegal era a cláusula estabelecendo a competência dos tribunais de Nova York para dirimir dúvidas e solucionar conflitos relacionados à execução dos contratos, o que iria colocar o Brasil como réu num tribunal comum estadunidense.

Pelo que se sabe, uma parte do dinheiro foi utilizada em benefício do povo brasileiro e é justo que se faça o pagamento da dívida, devendo-se, entretanto, apurar cuidadosamente o montante legalmente devido. Outra parte da dívida decorre, pura e simplesmente, de corrupção, pois uma parcela do dinheiro nunca chegou ao Brasil, tendo ido, provavelmente, para contas numeradas em algum país cujo sistema bancário oferecia abrigo seguro para o dinheiro público roubado, ou então, chegou ao Brasil e foi utilizado para o pagamento de obras que nunca saíram do papel. Foi por terem informações sobre essas práticas que os constituintes de 1988 colocaram na Constituição o referido artigo 26. É necessário e urgente que o Congresso Nacional cumpra sua obrigação constitucional, para que o povo brasileiro não continue a ser roubado e para que o dinheiro do povo seja utilizado para a efetivação do direito de todos os brasileiros aos serviços e bens essenciais, como estabelece a Constituição.