Título: Casados até depois da morte
Autor: Gláucio Ary Dillon Soares*
Fonte: Jornal do Brasil, 19/05/2005, Outras OPiniões, p. A11

Casamentos e relações significam muitas coisas diferentes: uns simplesmente ''ficam''; outros se unem, mas desatam o nó ao primeiro contratempo; e há os que continuam casados até depois da morte. O casamento protege, mas a morte do cônjuge afeta o sobrevivente: na média, aumenta a probabilidade dele(a) morrer também. Uma pesquisa retroativa, com dados de Utah, começou em 1860, foi até 1904, e acompanhou os dados de mortalidade até 1990. Conclusão: a morte do cônjuge reduz a vida dos viúvos, mas não a das viúvas. O efeito é forte no primeiro ano - a probabilidade de o sobrevivente morrer é duas vezes e meia mais alta do que o de pessoas com características semelhantes, mas que não perderam o cônjuge. Casar outra vez apaga ou diminui essa desvantagem. O efeito da viuvez sobre a redução da vida do sobrevivente se faz através de fatores que mediam entre a morte de um e a do outro. Há um descontrole sobre a vida e sua organização, sobre hábitos, crescimento da culpa e da sensação de vazio, além da depressão, que, por sua vez, atua por vários caminhos. Ela aumenta as mortes por problemas cardio-vasculares, como publicou Williams no Southern Medical Journal este ano. Seus efeitos permanecem no tempo. Eles vêm se somar aos do luto e da tristeza; os dois, depressão e a tristeza, aumentam as doenças cardio-vasculares. Algumas mortes ''matam'' mais que outras. Rhee e Antonucci demonstraram que os bons casamentos não provocam tanta depressão quatro anos mais tarde quanto os ''ruins''. Claro, há tristeza, há saudade - e muita, mas não há a sensação de vazio, de tempo perdido, de uma parte da vida jogada fora. Às vezes, há uma culpa boba por ter ou não ter feito isso ou aquilo. Infelizmente, um dos fatores através do qual a viuvez aumenta a mortalidade é o suicídio. Li, da Universidade de Johns Hopkins, estudou quase dez mil pessoas de mais de 60 anos em 1963, acompanhando-as durante 12 anos. O risco de suicídio para os homens que enviuvaram era 330% em relação aos casados, mas a viuvez não afetava o risco das mulheres. Outras variáveis foram ''controladas'', de maneira que este é um efeito ''líquido''. A viuvez não leva as mulheres idosas ao suicídio, mas leva muitos idosos, particularmente nos primeiros meses. A diferença talvez se deva à solidão e à falta de fé dos homens. Nesse grupo, literalmente, a fé e a religião podem ser a diferença entre a vida e a morte.

O efeito protetor do casamento, particularmente do casamento feliz, foi documentado em muitos países. Na Finlândia, a mortalidade dos viúvos é 30% mais alta, durante seis meses, do que a de homens casados com as demais características iguais; depois as diferenças baixavam para 20%; a das mulheres começava 20% mais alta e terminava 10% mais alta. Uma pesquisa com 360 mil viúvos e viúvas feita na Suécia demonstrou que o efeito da perda do cônjuge era maior entre os mais idosos. No grupo de 70 a 74, o aumento da mortalidade foi de 48% entre os viúvos e de 22% entre as mulheres nos primeiros três meses após a morte. A diferença se devia, principalmente, ao câncer e às doenças cardio-vasculares, mas os acidentes, os suicídios e a cirrose também contribuíram. As diferenças, em menor grau, persistiam onze anos depois.

Rahman pesquisou mais de 60 mil pessoas nas áreas rurais em Bangladesh, mostrando que o excedente de mortalidade das pessoas que nunca casaram também aumenta com a idade. O casamento protege: tanto entre homens quanto entre mulheres, os casados tinham um risco menor de morte do que os solteiros e divorciados.

Não obstante, Hu e Goldman, em pesquisa internacional, concluíram que a separação por divórcio é pior do que a separação por morte do parceiro. Esse efeito é maior entre os homens. Entre os homens jovens, a morte, com freqüência, advém por causas externas, violentas. Assim como a qualidade dos casamentos varia, a dos divórcios também.

Duas questões relacionadas são: quanto tempo até que o efeito negativo da viuvez atinja o máximo e qual a sua duração? Um estudo sueco de gêmeos mostra que o maior efeito é durante os primeiros anos. Entre as viúvas que sobreviram quatro anos o efeito diminuia visivelmente. O efeito da viuvez nesse estudo é maior entre os ''jovens velhos'', de menos de 70 anos, do que entre ''velhos velhos'' de 70 e mais. Já Schaefer, Quesenberry e Wi colocam o efeito maior durante o segundo semestre após o falecimento. Entre as mulheres, o risco era 90% mais alto do que as que não perderam o consorte e entre os homens com boa saúde o risco era 112% mais alto neste período.

Kaprio e associados estudaram quase cem mil finlandeses. Concluíram que o aumento do risco foi maior imediatamente depois do falecimento do cônjuge, sobretudo por problemas cardíacos. No mesmo país, Martikainen e Valkonen confirmaram que o excedente de mortalidade foi maior nos primeiros seis meses, sublinhando que o risco é maior em umas causas de morte do que em outras: a mais alta se devia a acidentes, mortes violentas, incluíndo mortes vinculadas ao consumo de álcool (de 50% a 150%). O risco era moderadamente mais elevado no que concerne isquemias letais e câncer do pulmão (20 a 35%) e reduzido para as demais causas (entre 5% e 15%).

A solidão é má companheira. As pessoas sós vivem menos. Em Augsburg, na Alemanha, Baumann e equipe compararam as taxas de mortalidade de solteiros, viúvos e divorciados com a dos casados. A diferença era muito forte entre os homens: 437.3 vs 235.3. Entre as mulheres havia, também, diferenças, mas o patamar era muito mais baixo: 121.6 vs 80.7. O chamado ''capital social'' (família, amigos, grupos, membros de associações etc) era importante: os sós, sem amigos nem família, vivem menos.

Zisook e Shuchter analisaram a história da tristeza pós-falecimento. A raiva, a culpa e a depressão diminuem com o passar do tempo. Porém, como enfatizam os autores, ''muitos viúvos e viúvas não aceitam a morte do companheiro(a) e, a seu próprio modo, continuam indefinidamente a relação com o cônjuge falecido''. Muitos ''sentem'' a presença, alguns acham que se comunicam; quase todos continuam amando de alguma maneira. Há muitos casais que nem a morte consegue separar. O que o amor une, a morte não separa.

*Professor e pesquisador do Iuperj