Título: Nem melhores nem piores
Autor: Flávio Paiva
Fonte: Jornal do Brasil, 18/05/2005, Outras Opiniões, p. A11

Passado o acontecimento, restam as significações. E o que poderá nos dizer a Cúpula América do Sul-Países Árabes, além da polêmica sobre terrorismo, democracia, ocupação militar e conflitos hegemônicos? Mais do que esses temas quentes o encontro abriu novas dimensões para as relações sul-americanas com suas referências culturais árabes, a partir da oxigenação do direito de cooperação internacional no seu sentido mais pleno. A Cúpula nos deu oportunidades de fazer releituras do mundo.

O composto cultural brasileiro nos dá a liberdade de pensar o futuro sob novos parâmetros de tolerância e isso só é possível por meio da recomposição de tecidos culturais puídos por preconceitos geopolíticos. O equilíbrio da arquitetura planetária precisa da descentralização da visão de mundo européia e estadunidense. Daí a necessidade de seguirmos os vestígios de outros povos a fim de estabelecermos trocas de experiências civilizatórias que não sejam de dominação nem com base em qualquer retórica de superioridade.

O apreço familiar, a hospitalidade, o orgulho dos ancestrais e a bravura como valor social são aspectos da mentalidade árabe que temperam a visão de mundo sul-americana. Por conta dos mais de sete séculos de presença árabe na Península Ibérica, herdamos milhares de palavras de origem árabe nas nossas línguas espanhola e portuguesa. No Brasil, a imigração árabe influenciou a própria formação da cultura nacional. A valorização da palavra pronunciada, conhecida como fio-de-bigode; a poesia ritmada e eloqüente, feita para ser recitada; e a estrutura melódica do aboio nômade dos vaqueiros, descendem da corrente fônica característica da tradição oral arábica.

O diálogo com os países árabes significa um traçado de horizontes com o passado e com o futuro. Antes de Grécia, Roma, Espanha e Portugal, uma das pontas das nossas raízes já estava fincada no mundo árabe. A Renascença teve influência das circunstâncias criadas na Europa a partir do pensamento arábico. Por ter uma cultura do deserto, a Arábia talvez guarde na sabedoria beduína da busca de nascentes, também a tecnologia da sobrevivência no futuro de um mundo em desertificação.

Eles inventaram o número zero, as casas decimais, a álgebra. Os ensinamentos dos contos árabes estão nos arabescos do nosso imaginário. Influenciaram a medicina e a oftalmologia ocidentais. Bagdá desenvolveu asilos psiquiátricos séculos antes da Europa. Muito das nossas expressões simbólicas de poder vêm dessa gente que acreditou nas grandes edificações como demonstração de magnitude religiosa e de força dos seus governantes.

Os árabes serviram de ponte para os conhecimentos hindus e chineses chegarem ao ocidente. A navegação pelos desertos e a cultura dos observatórios produziram um conhecimento de astronomia que foi indispensável para as grandes travessias marítimas. E junto com a colonização do continente americano vieram muitas heranças dos séculos de presença árabe na Península Ibérica, tais como a metalurgia, a engenharia têxtil, o artesanato em couro, cerâmica a tapeçaria e a goma arábica.

Para que se tenha uma nova visão de desenvolvimento é inevitável que passemos por uma série de choques de verdades. De um lado, os impulsos para o compartilhamento em rede e a convicção do respeito mútuo às diferenças como condição para o equilíbrio entre as nações. De outro lado, o resistente senso de ''descolonização'', movido pelos interesses do colonizador que controla os meios produtivos do colonizado e, como quem poda as raízes de um bonsai, induz os seus desejos de modernidade. O fato de o Brasil ter articulado e sediado esse histórico encontro nos enriquece como país capaz de dialogar e de respeitar as diferenças sem cair na antinomia civilizado-bárbaro.