Título: Gota d'Água
Autor: Paulo Nogueira Batista Jr. *
Fonte: Jornal do Brasil, 20/05/2005, Outras Opiniões, p. A11

''Deixe em paz meu coração

Que ele é um pote até aqui de mágoa

E qualquer desatenção, faça não

Pode ser a gota d'água''.

Chico Buarque

O Comitê de Política Monetária do Banco Central, o famigerado Copom, aumentou a taxa de juro outra vez! Parece inacreditável. Contra tudo e todos, a direção do Banco Central insiste em aumentar a dose de um remédio que se mostra cada vez menos eficaz e provoca efeitos colaterais cada vez piores.

A decisão foi unânime, segundo nota do Banco Central à imprensa. Unanimidade! Permita-me, leitor, citar uma frase célebre: ''Toda unanimidade é burra''. Peço a permissão por dois motivos. O primeiro é que sou tão obsessivo nas referências a Nelson Rodrigues quanto o Copom na insistência em elevar os juros. O segundo é que a frase, de tão citada, perdeu um pouco a graça.

Não deixa de ser válida, entretanto. Ora, segundo consta, os integrantes do Copom são todos inteligentíssimos. Logo, uma das duas possibilidades seguintes é verdadeira: a) a regra rodrigueana, como toda regra, admite exceções - e o Copom é uma delas; ou b) a unanimidade é falsa, e não burra - a suposta unanimidade seria uma simples fachada, erguida para não perturbar o mercado financeiro.

Admitir a primeira possibilidade seria desprimoroso - não queremos questionar a inteligência dos ilustres membros do Copom. A segunda é mais aceitável. Não é crível que todos, sem exceção, tenham concordado com tamanha barbaridade!

Com o aumento da taxa nominal básica para 19,75%, a taxa real de juro (isto é, a taxa nominal ajustada pela inflação esperada no IPCA para os próximos doze meses) alcança nada menos que 13,6%. Não há país no mundo (ou no mundo estatisticamente acessível) que se compare ao Brasil nesse particular. Somos rigorosamente imbatíveis.

Não vamos nem falar agora nas taxas extorsivas que os bancos cobram das empresas e, sobretudo, das pessoas físicas. Fiquemos com a taxa básica de juro (a taxa Selic) e seus equivalentes próximos no resto do mundo. A consultoria GRC Visão realiza levantamentos periódicos sobre juros com dados dos 40 principais países do mundo (na verdade, 39 países e Hong Kong). O conjunto inclui os países desenvolvidos mais importantes (EUA, Canadá, Japão, os principais europeus, Austrália), todos os maiores países ''emergentes'' (Argentina, Brasil, África do Sul, Rússia, Polônia, China, Coréia do Sul, Taiwan, Índia, Indonésia, entre outros) e várias economias menores.

O que mostra esse levantamento? Basicamente o seguinte: a taxa de juro brasileira é uma anomalia de proporções escandalosas. O segundo colocado no ''ranking'', a Turquia, com 6,6%, não chega à metade da taxa atual do Brasil.

Veja, leitor, o absurdo: a taxa real do Brasil equivale a 23 vezes a taxa real média dos países desenvolvidos, que é 0,6%, e a 11 vezes a média dos demais ''emergentes'', que é 1,2%.

Pelo amor de Deus, o que é que tem o Brasil que o obriga a praticar juros reais tão mais altos do que os do resto do mundo?

Analistas do mercado financeiro não esperaram nem a poeira baixar. Imediatamente depois da decisão do Banco Central, passaram a comentar que nada garante que esse tenha sido o último aumento. Já se começa a preparar o terreno para nova subida dos juros na próxima reunião do Copom?

Faça não. Pode ser a gota d'água.

*Paulo Nogueira Batista Jr. (pnbjr@attglobal.net) é economista e professor da FGV em São Paulo. Artigo reproduzido da Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br)