Título: Osvaldo Coggiola*
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 22/05/2005, Intenacional / Além do Fato, p. A11

Há muito mais do que gás no país

A crise política da Bolívia tem antecedentes muito mais profundos e mediatos do que a sanção, no dia 17 de maio, da nova Lei de Hidrocarbonetos, que cria um novo imposto sobre a exploração de petróleo e gás no país e colocaria sob responsabilidade do Estado a administração do setor, obrigando 12 companhias estrangeiras ¿ entre elas, Petrobras, Exxon Mobil e Repsol YFP ¿ a renegociar 72 contratos de exploração e produção, aumentando os custos das empresas de petróleo e gás instaladas no país. As empresas já ameaçam suspender novos investimentos. A Petrobrás afirma que já investiu US$ 1,5 bilhão no país vizinho. O não dito dessa versão é que a operação das multinacionais produz lucros anuais declarados (abaixo da realidade) de exatamente US$ 1,5 bilhão. E que a Bolívia, cuja reserva alcança 55 trilhões de pés cúbicos de gás, a segunda maior da América Latina, dos quais só poderia consumir dois trilhões nas próximas décadas, diante de um custo internacional de extração de um barril equivalente de petróleo de US$ 5,60, tem um custo de produção (baixos salários, isenções fiscais, disponibilidade natural e infra-estrutura estatal mediante) de um dólar para Repsol e a US$ 0,97 para a Amoco (de acordo com relatório do Global Upstream Performance Review, 2003, ) o mais baixo do mundo.

A nova lei promulgada pelo congresso boliviano estabelece os royalties a serem pagos em 18%, mais 32% de impostos não dedutíveis. A oposição (representada no Movimento ao Socialismo, MAS) reivindicava uma taxa única de 50% sobre os royalties. Mas, como reconheceu um dirigente do MAS:

¿ As bases nos superaram. Nós queríamos marchar pelo aumento dos royalties, mas a população quer a nacionalização.

A 16 de abril passado, um Encontro Nacional pela Nacionalização dos Hidrocarbonetos realizado na localidade de El Alto, transformada em centro das mobilizações populares, reivindicou ¿tomar em nossas mãos a tarefa de expropriar a totalidade dos hidrocarbonetos e todos os grandes meios de produção do país. O governo de operários e camponeses anulará a grande propriedade burguesa e instaurará a propriedade social dos meios de produção¿.

A gritaria armada pelas grandes companhias leva em conta que no debate parlamentar a norma aprovada já foi muito adaptada às exigências dos grupos petrolíferos: deixa abertos mecanismos fiscais para compensar às empresas pelos novos impostos, recorta as atribuições do Estado para fixar os preços do combustível, não declara a caducidade dos contratos vigentes. Quando a discussão da nova lei começou, a Petrobras afirmou que estaria disposta a suportar aumento da carga tributária para até 50%, que foi o que acabou acontecendo.

A profunda crise política atual, que transformou o governo do presidente Carlos Mesa em refém do parlamento e das ruas mobilizadas, origina-se na ¿agenda de outubro de 2003¿ (nacionalização das jazidas e a questão do poder), quando a mobilização popular derrubou o governo neoliberal de Gonzalo Sánchez de Losada, e que Mesa tentou substituir pela ¿agenda de julho de 2004¿, quando um plebiscito aprovou uma proposta nos moldes da lei atual.

Com ele, se tratava de criar um pacto de governabilidade com a direita do Sul boliviano (região de maioria branca, à diferença do que se registra no Altiplano indígena). A possibilidade desse compromisso levantou em Santa Cruz de la Sierra e Tarija a reclamação de autonomia dos departamentos (estados) petroleiros, para beneficiar-se da carga impositiva sobre as multinacionais.

Em março deste ano, o presidente Carlos Mesa armou um verdadeiro auto-golpe, ao ameaçar com a sua renúncia, forçando a rejeição da manobra por parte do Congresso Nacional, e obrigando à celebração de um Pacto de Unidade Nacional. A amarração desse compromisso tirava do debate parlamentar e institucional (para não dizer do debate democrático) os dois temas-chave da agenda boliviana: a Lei de Hidrocarbonetos e a questão da autonomia para os departamentos do Sul do país. O ¿sucesso¿ desse pacto se mede à luz da crise e das mobilizações atuais.

A crise é maiúscula, e coloca em pauta um adiantamento das eleições gerais. Existiria um agrupamento de militares para enfrentar a ¿dissolução do país¿, com colocações semelhantes às do general nacionalista Juan José Torres, no início da década de 70. O chefe da Central Operária Boliviana (COB), Jaime Solares, chegou a afirmar:

¿ Precisamos um governo revolucionário como o de Hugo Chávez (presidente da Venezuela).

Em abril, em turnê pela América Latina, a Secretário de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, declarara que Bolívia e Equador eram os grandes fatores de instabilidade política da região.

O que está em jogo na Bolívia, portanto, é muito mais do que parece à primeira vista (um novo sistema fiscal e o fluxo de investimentos gás-petroleiros), e interessa toda América Latina.

O Brasil não será afetado só nos 24 milhões de metros cúbicos de gás que a Bolívia lhe envia, empregados, hoje, na proporção de 80% na geração de energia das empresas industriais e também no abastecimento da frota de veículos movidos a Gás Natural Veicular (GNV) e nas termoelétricas, ativadas quando falta energia hidrelétrica e cujo custo de geração é menor.

Mobilizações populares maciças ocupam há dias as ruas do centro da capital La Paz; há bloqueios de estradas importantes e estratégicas em várias partes do país. Trabalhadores de minas, professores e funcionários da saúde iniciaram paralisações ao mesmo tempo em que as marchas decretadas pela central operária acontecem. É nesses episódios que está se jogando o destino da Bolívia e, com ele, boa parte do futuro político da América do Sul.

*Licenciado em História e em Economia pela Universidade de Paris, mestre e doutor na École des Hautes Études em Sciences Sociales. Chefe do departamento de História da USP