Título: Passado reescrito à base de audácia
Autor: Claudia Bojunga
Fonte: Jornal do Brasil, 22/05/2005, Internacional / Ciência, p. A12

Cientistas apelam para a criatividade e conseguem avanços em programa que resgata história de múmias egípcias do Museu da Quinta da Boa Vista

O projeto de tomografar o acervo de múmias egípcias do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio, e usar os resultados para reconstruir modelos humanos que possam devolver rosto e História a elas avança driblando sérias dificuldades de orçamento - já que não conta com verba de governo ou patrocínio. O mérito é da equipe de pesquisadores, que se vale da criatividade para superar os muitos obstáculos em um momento onde descobertas de arqueólogos no Egito têm lançado luzes sobre essa civilização tão antiga quanto intrigante.

- Tudo aqui é na base da boa vontade - afirma o engenheiro e designer Jorge Lopes, responsável pelo Laboratório de Modelos Tridimensionais do Instituto Nacional de Tecnologia ( INT). - Alguns jornais têm dito que o faraó Tutankamon foi a primeira múmia a passar pelo tomógrafo. Mas na verdade nós fizemos antes - acrescenta.

Em abril, ficou pronta a reconstituição oficial de uma cabeça mumificada, apelidada de ''Bela de Tebas'', que faz parte do acervo. A idéia é realizar esse mesmo processo com as quatro múmias adultas e outras duas de crianças que compõem a reserva técnica do museu. A técnica permite que se possa reconstruir a peça sem risco de que sejam danificadas.

A primeira fase do processo é levar as múmias ao tomógrafo. O equipamento cria centenas de imagens em lâminas tridimensionais - um corte por milímetro - depois unidas em um objeto. Mas - como conta o egiptólogo Antonio Brancaglion - enquanto a equipe que fez a reconstituição do rosto de Tutankamon ganhou um tomógrafo de presente, os brasileiros usam um aparelho similar instalado em uma clínica particular da Barra da Tijuca.

- Fazemos as tomografias de madrugada, quando não há pacientes. É feita de graça, numa das máquinas mais modernas do mundo. O custo do procedimento seria, normalmente, cerca de R$ 4 mil reais - conta Brancaglion. - Além disso, o radiologista Iugiro Kuroki ainda nos dá toda a assistência, também sem cobrar - completa.

O drible na carência não pára por aí. Jorge Lopes diz já ter até levado a múmia à clínica no próprio carro. Integram o grupo, além dele e de Brancaglion, a paleopatologista Sheila Mendonça, Kuroki, o escultor Ronaldo Rocha e o Centro de Pesquisas Renato Archer (Cempra).

- É o primeira projeto interdisciplinar que estuda o acervo egípcio do museu - afirma Brancaglion.

As imagens são enviadas a um laboratório ao Cempra, em Campinas, onde ganham dimensões reais em um protótipo gerado por equipamento especial - técnica testada na cabeça da Bela de Tebas . A partir desse modelo, que é mandado para o INT, é colocada a ''pele'' que reconstitui as feições originais do indivíduo. Sobre ela, para compor o rosto, é aplicada massa de argila. É a fase na qual Ronaldo Rocha atua. O escultor, aliás, tinha uma bolsa, mas o pagamento está suspenso. Além disso, os materiais usados para essa reconstituição são as sobras do laboratório.

A falta de apoio não deixa que os prazos de execução fiquem abaixo dos seis meses, em média. Na semana passada, chegaram ao INT dois novos protótipos de crânio para serem montados: um é o de uma múmia do período romano, uma das mais raras do mundo. A outra é de Sha-Amun-em-su, uma sacerdotisa, cujo esquife nunca foi aberto.