Título: O ilusório poder de compra da China
Autor: Marcelo Henriques de Brito*
Fonte: Jornal do Brasil, 22/05/2005, Economia & Negócios / Além do Fato, p. A18
No mês de maio de 2005, o salário mínimo no Brasil superou com folga US$ 100, valor que foi, para alguns, durante muito tempo, o único piso aceitável. Todavia, para que comparar os salários de trabalhadores no mundo usando uma mesma moeda internacional, se aos trabalhadores lhes interessa ter poder de compra na sua região com a moeda local? Adicionalmente, lhes é importante que o preço de um produto no mercado local apresente uma relação constante e justa com outros preços (incluindo salários, que são os preços do trabalho). Pode entretanto ser complexo interpretar o poder de compra após uma conversão de preços com taxas de câmbio. Esta discussão requer o exemplo numérico a seguir inspirado em dados reais. Suponhamos que o salário de um trabalhador com baixa qualificação deva ser 44 vezes o preço de um famoso sanduíche mundialmente disponível. Se este preço no país B for 5,90, o referido salário será 259,60 (=44x5,90). A mesma razão 44 ocorreria num país C onde a remuneração por um trabalho similar seria 435,60 na moeda local e o sanduíche custasse 9,90 (pois 435,60 dividido por 9,90 é igual a 44). Nesta situação, a taxa de câmbio ¿correta¿ entre o país C e o país B é 1,68 por fazer uma equivalência entre preços (pois 1,68 é igual a 435,60/259,60 e 9,90/5,90).
Acontece que o país C impõe uma taxa de câmbio fixa de 8,28 frente à moeda do país A. Assim, o preço do sanduíche e o salário do país C, expressos na moeda de A, serão respectivamente 1,20 (=9,90/8,28) e 52,60 (=435,60/8,28). Tais valores seriam considerados muito baixos por alguém com a moeda de A, ainda que possa ser aceitável a mesma razão de 44 entre os preços 52,60 e 1,20. Além disso, a taxa de câmbio fixa entre C e A afeta o país B, pois quando o câmbio entre B e A for 2,60, o país C terá com B uma taxa de câmbio de 3,18 (=8,28/2,60), em vez de 1,68. Logo, quem está no país B fica com a impressão de que os preços no país C são menores do que os praticados no país B, já que, na sua moeda, o salário e o sanduíche do país C custarão respectivamente 137 (=435,60/3,18) e 3,11 (=9,90/3,18). Aumenta a percepção no país B do baixo poder de compra em C quando B valoriza sua moeda frente à moeda de A, no que o câmbio cai de 2,60 para abaixo de 2,50, por exemplo.
O leitor talvez tenha intuído que EUA, Brasil e China inspiraram os dados dos países A, B e C. De fato, preços da China quando expressos em dólares parecem ínfimos e confundem quem está nos EUA ou no Brasil sobre o efetivo poder de compra na China. Embora o salário de trabalhadores com baixa qualificação possa ser adicionalmente reduzido pelo excesso de oferta (o que reduz a citada razão 44, acarretando salários abaixo de 50 dólares), é uma ilusão achar que as empresas instaladas na China precisem remunerar mal os seus funcionários na moeda local e oferecer condições de trabalho desumanas para não comprometer o seu retorno financeiro. Na realidade, a China é um dos países com maior número de certificações SA800 de responsabilidade social no mundo, na frente de Índia e Brasil.
Como demonstrei em detalhe na seção ¿Negócio da China¿ do livro Crise e prosperidade comercial, financeira e política (Probatus), a estratégia da China de impedir a valorização da moeda dissimula sua expansão econômica com mais vigor frente aos EUA. Ademais, ao manter a taxa de câmbio de 8,28 com o dólar dos EUA, a desvalorização do dólar frente ao euro fatalmente significa uma valorização da moeda européia em relação à moeda chinesa. Assim, os produtos oriundos da China ficaram ainda mais baratos quando expressos em euros, o que, por exemplo, estimulou uma invasão de têxteis na Europa.
A pressão internacional, cada vez mais intensa, pela valorização imediata e significativa da moeda chinesa gera uma expectativa de um ganho cambial que atrai capital estrangeiro. Isto favorece ainda mais o balanço de pagamentos e o conseqüente aumento das reservas da China. Este país posterga portanto mudanças na sua política cambial, que fomentou o desenvolvimento a partir das exportações de uma produção, aparentemente barata, que gera preços lucrativos e competitivos.
A notável expansão das exportações chinesas aumenta os consumidores no mercado interno com poder aquisitivo para produtos com elevada margem, o que também atrai investimentos externos. Finalizando, obstáculos para repatriar lucros (o que gera reinvestimentos), exigência de acordos com empresas locais e uma eventual complacência com práticas comerciais desleais no mercado mundial devem adicionalmente contribuir para a atual prosperidade dos negócios na China.
*Administrador e engenheiro, diretor da Associação Comercial do Rio de Janeiro e sócio da Probatus (www.probatus.com.br)