Título: Os grandes sertões
Autor: Mauro Santayana
Fonte: Jornal do Brasil, 23/05/2005, País / Coisas da Política, p. A2

Crítica de FH revela preconceito das elites paulistas contra o resto do Brasil. Fernando Henrique Cardoso, ao criticar o governo, em São Paulo, atribuiu-lhe a responsabilidade pela "sertanização" da política. Ao fazê-lo - já em plena campanha presidencial e incomodado pelo prestígio do governador Alkmim, aferido nesse encontro do PSDB -, revela velho preconceito de parte das elites paulistas contra o resto do Brasil. Felizmente, não é sentimento generalizado, e nem podia ser, uma vez que os paulistas devem muito de seu êxito ao trabalho, à inteligência e à cultura dos homens procedentes dos sertões. Se o alvo foi Severino Cavalcanti, o candidato estará assumindo alguma cumplicidade: afinal, todos sabem, em Brasília, como foi ponderável, e talvez decisivo, seu empenho em favor do candidato vitorioso à presidência da Câmara.

O ex-presidente tem motivos para sentir-se homem acima dos outros. Pelo nascimento e pela proteção das circunstâncias, pertence, desde criança, ao círculo dos escolhidos. Ao longo de sua carreira, Fernando Henrique soube conquistar os interlocutores, fossem eles os milhões de eleitores, fosse um só, no diálogo das articulações políticas. Assim, enganou o presidente Itamar Franco, que dele fez seu sucessor. Mas, neste momento, é provável que a vaidade intelectual do acadêmico lhe esteja perturbando o senso de oportunidade política.

Em primeiro lugar, o que ameaça a estabilidade institucional não é a "sertanização" da política, mas a insistência de certas elites (à direita e à esquerda) em manter a hegemonia de São Paulo sobre a União. Quando os "homens que contam" não procedem de São Paulo pelo nascimento, de São Paulo procedem pelos seus interesses corporativos.

Até mesmo como resultado de suas virtudes - que ali construíram um país rico, desenvolvido, com instituições de excelência em todas as áreas do conhecimento humano -, há claro descompasso entre a província de Piratininga e os outros estados. Dos amplos e bem iluminados gabinetes de sua capital é difícil ver os sertões. Mas é igualmente difícil, a essas elites, enxergar o Brasil nos aglomerados miseráveis e sangrentos de sua periferia - a poucos quilômetros da Avenida Paulista.

O ex-presidente, homem de vasta leitura, deve conhecer a advertência de Galileu: "muita sabedoria, muitas vezes quer dizer muita loucura". O momento brasileiro é de tal maneira delicado que metáforas zoológicas deselegantes e agoureiras, como a de comparar o governo a um "peru bêbado" na véspera de Natal, em nada contribuem para o debate, que deve ser sério, entre os homens públicos. Há uma crise em andamento, mas não seria inteligente atribuí-la somente às hesitações do atual governo. Talvez fosse conveniente atribuir a crise não à hesitação, mas à firme determinação de continuar a política econômica que vem conferindo, desde o Proer, todos os benefícios ao setor financeiro, em prejuízo das atividades produtivas - como revelam os balanços dos bancos -, e tem concentrado o poder das decisões executivas em pequeno comitê de econometristas.

Exultam os tucanos e outros oposicionistas com a realização da CPI sobre os Correios. Não pode, nem deve, o governo atual fazer o que sempre fez o do Fernando Henrique Cardoso, ao impedir a realização de CPIs sobre denúncias muito mais graves do que as atuais. É sempre bom recordar que um de seus primeiros atos foi o de extinguir Comissão Permanente, formada de cidadãos estranhos ao serviço público e de alta respeitabilidade, como os advogados Cândido Mendes e Modesto Carvalhosa, para receber e investigar denúncias de corrupção no Poder Executivo.

Voltando ao encontro de São Paulo, o candidato e ex-presidente Fernando Henrique não meditou bem o sertão. O sertão, no imaginário popular, é o espaço da bravura, do sacrifício, da fé e da honra. É a de Euclides, de Graciliano, de Glauber Rocha e de Guimarães Rosa que, com Riobaldo, nos diz que "o sertão é do tamanho do mundo". Sendo assim, e nessa ordem de idéias, é bom "sertanizar" o Brasil.

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