Título: À margem da festa das letras
Autor: Alexandre Fontoura e Ana Carolina Alves*
Fonte: Jornal do Brasil, 23/05/2005, RIo, p. A13

Morador da Zona Oeste relata como é não saber ler no evento que comemora mais de 2 milhões de livros vendidos

Durante os 11 dias da Bienal do Livro, Arlindo José de Souza, 40 anos, percorreu os corredores indiferente aos lançamentos, palestras ou entrevistas de escritores. Mesmo assim, a feira lhe rendeu um bocado. Mais precisamente, R$ 275. Analfabeto, o mineiro de Carangola é parte de um dos retratos mais tristes do Brasil, no qual se enquadram os 16 milhões de brasileiros que não sabem ler - número que pode chegar a 30 milhões, se forem incluídos na conta os analfabetos funcionais, que conseguem apenas assinar o nome. Pai de cinco filhos, Arlindo tenta a sorte no Rio aproveitando bicos como o que encontrou no Riocentro, trabalhando como lixeiro.

- Na verdade não vale muito a pena. Mas ficar parado é pior ainda. Gosto desses eventos porque é de onde tiro sustento para os meus filhos. Quando recebia vale-transporte, trocava por pão e vinha de bicicleta - conta Arlindo, enquanto separa parte do lanche que recebeu para levar para a filha filha de 14 anos, mãe de sua primeira neta.

O único contato com uma carteira escolar não teve qualquer relação com estudo.

- Quando eu era garoto, sentava numa carteira para tomar conta do gado numa fazenda - lembrou Arlindo, que, em meio às estantes repletas de livros na Bienal, diz sentir-se como ''cego em tiroteio''. Mas sem desanimar para as dificuldades.

- Ainda quero ler e escrever - avisa.

De acordo com dados do IBGE, a taxa de analfabetismo da população caiu de 65,3% em 1900 para 13% em 2000. Mas os avanços ainda não atingem a população de forma homogênea. Só nas três últimas décadas houve melhora nos índices que comprovam o número de negros nas escolas. Entre as pessoas com 15 anos de idade ou mais, o analfabetismo atinge 8,3% entre brancos. Entre os pretos, o problema está presente em 21% da população.

A grandeza de um evento que contabiliza mais de 2,3 milhões de livros vendidos (17% a mais que em 2003) e público de 630 mil visitantes impressiona e emociona até quem não sabe ler.

- Nunca ganhei livro. Aqui, só me deram lixo pra carregar. Às vezes tinha um escritor do meu lado e eu nem sabia quem era, mas escutava as pessoas comentando. Se eu soubesse ler, ia querer o livro, ia falar com ele - sonha Arlindo.

Durante os 11 dias de Bienal, Arlindo pasou cerca de 150 horas trabalhando, sempre das 7h às 23h, recolhendo o lixo gerado por estandes, deixado nas ruas, nas lixeiras dos cafés e nos coquetéis. Nos corredores lotados de estudantes, intelectuais e gente famosa, ele nem de longe se sentiu pior. Nem perdeu o humor.

- Não tenho vergonha de ser analfabeto. Vergonha é roubar e não poder carregar. Gosto de me sentir bem com os outros e que os outros se sintam bem comigo - brinca.

De volta ao conjunto habitacional Cesar Maia, no Coroado, Zona Oeste, Arlindo espera por mais uma oportunidade de trabalho temporário. E procura conversar com os filhos sobre a importância do estudo. Não quer que, no futuro, as dificuldades que enfrenta sem saber ler se repitam para os quatro. para ele, não conseguir ler não é sinônimo de alienação.

- O presidente Lula precisa ver o lado dos pobres. Tem muita gente sofrendo nas ruas. Nosso salário é vergonhoso ao lado dos impostos absurdos. A gente não recebe nada em troca, vai tudo para os bolsos dos grandes empresários - resume ele, dando sua versão sobre parte dos problemas que atingem a população pobre.

*Do JB Online