Título: Vamos ler Quintana a sério
Autor: Paulo Bentancur
Fonte: Jornal do Brasil, 21/05/2005, Idéias, p. 6

A rua dos cataventos Mario Quintana Globo 72 paginas R$ 24 Canções Mario Quintana Globo 88 paginas R$ 25

Sapato florido Mario Quintana Globo 168 paginas R$ 29

Não vá atrás apenas das capas, bonitas, e do projeto gráfico, e do plano todo da edição, organizada pela professora e crítica Tânia Franco Carvalhal. Os três livros que lançaram as bases da carreira de Mario Quintana acabam de chegar ao mercado de roupa nova, com estudos críticos introdutórios de fôlego, porém, a exemplo do próprio Quintana, não querendo cansar o leitor. Isso sim vale a pena. Tem bibliografia completíssima, do autor e sobre ele. Tem cronologia sem deixar nada de relevante de fora. E tem a personalização dos livros, marcados por uma tarja na folha de rosto anunciando o centenário de nascimento do poeta, que ocorre no ano que vem.

Mario Quintana é daqueles nomes que, uma vez transformados em símbolo de uma cultura, dificilmente recuperam para o trânsito habitual das discussões o registro inaugural que gerou tal símbolo. Traduzindo: obra produzida, o artista consagra-se pela via mais fácil da caricatura, e a obra mesma fica à espera de uma leitura que nunca vem.

Quintana virou poema de Manuel Bandeira, de Drummond, de dezenas de outros poetas menos importantes. Virou personagem de si mesmo (todos somos, mas ele mais do que todos), Anjo Malaquias, tríade de poeta-humorista-filósofo, vivendo sempre na remota região das nuvens, parente daquela espécie definida por Julio Cortázar como el gran comedor de mosca, modesta imagem a descrever a distração a serviço da genialidade.

Mas, e a obra? Foi dela que isso tudo veio, e pouco se vai a ela, contentando-se o público a relações amistosas e tímidas tipo ''que simpático e divertido velhinho língua-de-trapo!'' Lá longe, no tempo, perigavam distanciar-se de nós A rua dos cataventos (1940), Canções (1946), Sapato florido (1948), seus três primeiros livros, pedra inaugural e última de um conjunto lírico que mais tarde ainda daria irretocáveis momentos como O aprendiz de feiticeiro (1950) e Espelho mágico, lançado no ano seguinte. Apontamentos de história sobrenatural (1976), bem mais tarde, é outro desses momentos que confirmam a cristalização de uma poética única entre nós, poética já totalmente solidificada e auto-suficiente desde a estréia.

Vamos ler Quintana? Sério, e mais que sério. Nesse trio inicial estão todos seus temas e métodos. A reinvenção do soneto, num pós-simbolismo suave, transitando entre a força das imagens evocativas e uma melancolia que se dilui no afeto de conviver o dia-a-dia (A rua dos cataventos). Se contemplar é a grande aventura do poeta, mergulhar na reminiscência é, no caso de Canções, um espaço onde o ritmo se solta na dança mais plena sob uma dicção de irresistível apelo popular. Abre o livro uma canção à primavera, dedicada a Erico Verissimo e, quem sabe, referindo particularmente esse autor em Clarissa, novela primaveril, e sua afetividade confirmada em Música ao longe, que Erico lançara um ano antes de Canções. Por fim, em Sapato florido, tem-se o poema em prosa, o epigrama, o humor, já uma guinada maior na trajetória que recém se iniciava.

Três livros, três procedimentos. Um rigoroso, ''aprisionado'' no soneto; outro livre, entregando-se à dança das evocações; e por último as notas líricas numa prosa de risco calculado pela limpidez do estilo de Quintana. Quem lembra de tamanha sacudidela naqueles oito anos e tão poucos livros?

Prova desse ''esquecimento'' de leitura efetiva é a afirmação, já em 1978, de Ivan Junqueira, em seu livro À sombra de Orfeu: ''A crítica literária brasileira - às vezes estranha ao próprio conceito de crítica - jamais se ocupou como devia desse imenso poeta que é Mario Quintana''. A frase, aliás, é citada logo na abertura de um importante ensaio, ''Mario Quintana: As faces do feiticeiro'', de Paulo Becker, numa co-edição PUC/Editora da UFRGS. O volume mapeia propositadamente apenas os cinco livros iniciais do poeta. A tese de Becker, poeta também, é que nesse quinteto original residem essência, forma, gênese, evolução e fixação da obra de Quintana.

Exigido pela pressão de uma lírica apressadamente modernista, cujo valor dos versos pagava tributo (e caro) aos ventos provocadores da época (década de 30), Quintana estreou noutro tom: com A rua dos cataventos, escolheu o soneto, praticamente aposentado desde a virada do século; enveredou para um tipo de simbolismo tardio, só que nada tardio, já que a ele (ritmos lânguidos, intimismo, imagens de uma rica espiritualidade) somou conquistas estéticas posteriores, num claro sincretismo lírico, costurando duas ou mais escolas.

A vida toda tentaram dar-lhe um rótulo, em vão. Não era possível. Extemporâneo, jamais prestou-se ao papel de epígono ou de clone de uma literatura acostumada a ecos e pouco mais que eles. Este o motivo, talvez, de um certo silêncio crítico, da relativa preguiça de análise, da não muito rica bibliografia sobre sua obra. Como classificar Quintana sem lê-lo com a atenção devida, suficiente para se saber que a partir dele uma nova - e única - trilha na poesia brasileira começa?

Num registro clássico, de aparente passadismo, ele incorporou cores, temas, ritmos novos, logrando versos únicos, pessoais (não no plano do restrito, e sim do estilo único). Somou humor, filosofia (sua poesia é basicamente epigramática) e uma melancolia piedosa com o mundo todo e consigo mesmo. Mas, poeta maior, convida a cada linha a desconfiarmos, a reinaugurarmos o mundo, a viajarmos incessantemente ainda que sem armas e bagagens.

Poeta ao desabrigo, se dispõe, naturalmente vestido de ironia. A maior de todas seria ser lembrado, mas não por seus poemas. Evitemos esse crime lendo-o de fato.

Autor de Bodas de osso, poemas. Atualmente escreve uma biografia de Erico Verissimo.