Título: As barbaridades tributárias
Autor: Milton Temer*
Fonte: Jornal do Brasil, 24/05/2005, Outras Opiniões, p. A11

Eis o caráter antidemocrático do Estado brasileiro: sobre o trabalho assalariado, o desconto severo do Imposto de Renda. Sobre a especulação financeira, leniência

Você sabe o que é IOF? Ou, da mesma forma que boa parte dos brasileiros nunca viu, nem comeu; só conhece de nome, como bem filosofa Zeca Pagodinho?

Para os não-iniciados, trata-se do Imposto sobre Operações Financeiras - o tributo incidente sobre as movimentações especulativas, que transformam dinheiro em mais dinheiro, sem obrigatória produção de riqueza material correspondente, nas ''altas'' e ''baixas'' dos famigerados ''mercados''. Coisa de cachorro grande, onde milhões para cá e milhões para lá, na manipulação especulativa, são a rotina num espaço que deveria ser gerador de imensos recursos para a Receita Federal, não é mesmo?

Doce ilusão. No clima de crescente descompostura que norteia a conjuntura política atual, ao se discutir a indispensável reforma tributária, o debate sobre esse imposto vai constantemente para escanteio. E junto com a água suja da bacia, vai o bebê. Ninguém discute a justiça, ou não, dos valores por ele registrados. O debate fica limitado à demanda do crescimento da participação de estados e municípios no bolo total, ou à redução das obrigações trabalhistas essenciais.

Prova disso está na quase nula repercussão do relatório da Receita Federal sobre o total arrecadado, de janeiro a abril deste ano. Foi divulgado na sexta-feira, e merecia mais destaque fora das páginas especializadas, pois está ali um exemplar atestado do caráter essencialmente antidemocrático do Estado brasileiro. Sobre o trabalho assalariado, o desconto severo do Imposto de Renda na fonte. Sobre a especulação financeira, a quase absoluta leniência.

Confiram.

Foram recolhidos, nos quatro primeiros meses do ano, R$ 117 bilhões, em impostos. Como se compuseram estes R117 bi? O Jornal do Brasil - o que melhor editou a notícia, em seu caderno de Economia - se preocupou em organizar um gráfico didático. E está lá o cenário dantesco: a escala começa na Cide, com R$ 2,5 bi, para chegar ao Imposto de Renda, físico e jurídico, com 39,7 bi. O IOF? Este não aparece no gráfico comparativo, em função de sua absoluta insignificância. As operações financeiras geraram apenas R$ 1,88 bi. Mais precisamente, apenas 1,6% do total.

Mas a indignação não fica na constatação da ridícula cifra do IOF. Outro aspecto importante da leitura do relatório está na avaliação dos tributos vinculados constitucionalmente à seguridade social, e que lá não chegam por deliberação política do governo. Aspecto importante porque comprova de forma incontestável a má-fé no estabelecimento dos anunciados ''déficits da Previdência''. De janeiro a abril, o recolhimento do Pis-Pasep alcançou R$ 7 bilhões. O da CSLL, R$ 9,6 bilhões. O do CPMF, R$ 9,3 bilhões. E o do Cofins, R$ 27,8 bilhões!

Para onde foi todo este dinheiro? Simples. Para o bolso dos banqueiros. Na garantia do fluxo incessante de lucros do sistema financeiro, através do pagamento de juros e serviços de uma dívida pública, nunca auditada, esses recursos são desviados da Previdência para o caixa do famigerado superávit primário. O que, aliás. todo mundo minimamente informado sabe, embora alguns analistas favoráveis ao desmonte do aparelho do Estado e à desregulamentação da Economia, finjam desconhecer. Compreensível. Fica mais fácil, com tal distorção consciente de resultados, assumir a defesa do interesse dos agiotas legais, obcecados nos ganhos da previdência privada.

O trágico nisso tudo, é que Palocci, Berzoini e Mercadante, como representantes da bancada petista na comissão especial que discutiu o tema durante o governo FHC, assinaram emendas estabelecendo, inclusive, distinção tributária entre o lucro bancário obtido nas operações de crédito, e o lucro predatório obtido com a especulação com títulos da dívida pública do governo. Ou seja; tinham consciência do caráter predatório das operações com os títulos do governo. Mas eram tempos em que o PT gerava esperanças. Sem medo de ser feliz. E sem medo de CPIs.

PS - A ameaça severina de sacar Guilherme Estrela da Diretoria de Produção da Petrobras é um atentado grave contra o patrimônio nacional. O substituto indicado é típico exemplo da ocupação predatória da administração pública, por conta de interesses puramente reeleitoreiros.

*Milton Temer escreve às terças-feiras nesta página