Título: Troféu em disputa
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: Jornal do Brasil, 24/05/2005, Outras Opiniões, p. A11

As comemorações dos 60 anos do fim da 2ª Guerra Mundial reavivaram a origem da Guerra Fria, quando os dois maiores exércitos vencedores, o soviético e o norte-americano, já revelavam a fragilidade da solidariedade entre as suas nações. Em plena festa em que confraternizavam os vencedores, o impetuoso general Patton, na troca de brinde com um general russo, disse-lhe impropérios, entre os quais o desejo de a América atacar desde logo a URSS, impossível que lhe parecia conviver o comunismo com a democracia.

Conquanto aparentando relação até afetuosa entre os presidentes Bush e Putin, a troca de farpas foi constante. O americano foi além das palavras. No itinerário para Moscou, após os festejos na Europa, o presidente Bush visitou países bálticos que haviam recusado o convite de Putin, pois não perdoam a histórica subjugação deles à colonização oriental, antes e depois da 2ª Guerra Mundial, com o intervalo trágico do nazismo que também os dominara. Em represália, o presidente russo declarou que o exército soviético foi quem realmente libertou a Europa, numa guerra em que as suas baixas ultrapassaram 20 milhões de mortos, na luta contra os exércitos alemães. Mas sem a segunda frente - tão reclamada por Stalin - concretizada a partir do desembarque na Normandia, e o numeroso suprimento de equipamento bélico enviado pelos americanos para os soviéticos, é muito pouco provável que as tropas de Stalin pudessem ter chegado a inverter, desde Stalingrado, os rumos da guerra. Quem mais merece o troféu da vitória sobre o nazismo ?

Essas são apenas conjecturas no campo bélico, que são ultrapassadas no debate político suscitado na comparação de nazismo com o comunismo. Qual dos dois regimes totalitários, para os democratas, foi pior? Ambos visaram ao domínio mundial. Fiel a Marx, o comunismo eliminou a propriedade privada e a sociedade de classes; o nazismo tentou implantar uma ordem mundial que extinguisse as raças ''inferiores'', principalmente os judeus. Baseavam-se ambos na legitimação supostamente científica de seus princípios, um no socialismo científico, que Marx contrapôs ao socialismo utópico e o outro na pureza da raça ariana, inspirado em Gobineau, o teórico francês autor do Ensaio sobre a desigualdade das raças. Como ironiza Alaín Besançon, tanto o comunismo como o nazismo pretenderam-se filantrópicos. O nazismo desejando o bem do povo eleito, o ariano, e o comunismo leninista dedicado a realizar o bem não só de uma raça, mas de toda a humanidade. Nisso, pois, mais filantrópico que o comunismo. Para fazer o mundo feliz, julgavam-se credenciados a matar os opositores às suas ideologias.

A memória histórica mundial, presa da parcialidade intelectual, trata desigualmente comunismo e nazismo. Olvida os males do comunismo e enfatiza os dos nazistas. As gerações nascidas depois de 1945 têm sido bombardeadas com as provas das atrocidades nazistas, ao passo que as do comunismo são escamoteadas. O mundo contemporâneo não se descuida de recordar os crimes nazistas e não perdoa os que com ele colaboraram, ainda que em identidade intelectual passiva, admirador de Hitler, mas não necessariamente nazista, como o filósofo Martin Heidegger e o poeta Ezra Pound, só para dar dois exemplos. O nazismo é amplamente conhecido, sobretudo pela juventude. Os mais velhos viram, no cinema, as tropas aliadas vitoriosas mostrar até que ponto chegou a estupidez humana dos campos de extermínio nazistas. Os cadáveres e os esquálidos sobreviventes judeus causaram grande impacto. Em contrapartida, os restos humanos dos campos de concentração da União Soviética, os Goulags, não foram mostrados ao mundo. O conhecimento da tortura e da humilhação dos prisioneiros é restrito. Poucos leram Soljenitsin e a descrição tenebrosa que faz do Arquipélago Goulag. Os crimes contra a humanidade nos tristemente famosos processos de Moscou, ao tempo de Stalin, são conhecidos de poucos. O massacre de Katin, mais de mil oficiais do exército polonês presos e enterrados em vala comum, atribuído pelos soviéticos aos nazistas, só recentemente se provou ter sido obra dos próprios soviéticos. O torpedeamento do navio de transporte alemão Steuben, conduzindo feridos de guerra, mulheres e crianças, ao todo 5,200 passageiros, quase todos mortos, foi ocultado durante sessenta anos. Aí está o perigo das falsificações históricas. Afinal, além de vitoriosos na guerra, os soviéticos foram juizes em Nürenberg e os mais severos carcereiros em Spandau, onde mantiveram preso Rudolf Hesse até sua morte, precedida de doença em estágio terminal, negando-lhe o pedido para morrer no seio de sua família. Desde então, tem sido regra da propaganda da esquerda distinguir o despotismo. Justo quando lhe convém, e perverso quando não.

O julgamento isento da história, porém, condena como manchas da civilização, tanto o nazismo como o comunismo, sem haver necessidade de comparar O livro negro do comunismo com sua réplica O livro negro do capitalismo. Os milhões de mortos de ambos os lados comprovam a bestialidade da ideologia totalitária.

*Jarbas Passarinho escreve às terças-feiras, a cada 15 dias