Título: Lula: um novo líder global
Autor: Cândido Grzybowski
Fonte: Jornal do Brasil, 20/10/2004, Opinião, p. A-11

A hegemonia do truculento imperialismo americano de George W. Bush na política global é tal que, muitas vezes, deixamos de perceber mudanças importantes no cenário das relações entre nações. Sem dúvida, a eleição nos Estados Unidos assume uma dimensão inédita, dada a própria centralidade do país, atuando acima e à revelia das convenções, acordos e instituições multilaterais. Como correlato, o terrorismo que os EUA de Bush definiram como a grande questão da agenda global, terrorismo para o qual a sua lógica de guerra total funciona como fermento. No Brasil, apesar da violência que ronda o cotidiano de nossas cidades, estamos bem longe do clima de paralisia que se criou nos EUA e nos países que apoiaram a guerra no Iraque. Quando se viaja à Europa, é possível observar a angústia estampada nos rostos das pessoas. A coisa é bem mais do que uma guerra psicológica, pois o terrorismo já deu provas, como o próprio Bush, de sua determinação no ataque contra o que, na sua visão fundamentalista, constitui o inimigo.

Felizmente, porém, a vida em nosso planeta não se restringe a isto. O futuro tenta emergir em meio ao caos provocado por um capitalismo exacerbado pela ganância das corporações em tudo controlar e pela legitimação de uma globalização neoliberal produtora de desigualdade e exclusão. São pequenos sinais, mas significativos. Contra toda lógica, está surgindo no mundo uma voz forte dos que se sentem de fora. É como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está sendo visto: uma liderança forte do Sul, com uma agenda que recoloca no debate as questões da parte mais fraca do mundo, no entanto em torno de 80% da população mundial. E, o que é mais notável, é uma voz que está sendo ouvida e começa a ser respeitada.

A adesão de centenas de países - e de mandatários como Zapatero (Espanha), Lagos (Chile) e Chirac (França) - à proposta brasileira de um Fundo Mundial de Combate à Pobreza, anunciada recentemente em Nova York durante encontro de líderes mundiais na ONU, é simbólica desse status de Lula. Poderia parecer um repeteco de tantas boas intenções. Mas não, à margem e por dentro, ao mesmo tempo, da ordem dominante, emerge um clamor por recolocar no centro a questão da justiça global. Mais, transformam-se em propostas as idéias que há muito tempo alimentam movimentos da nascente cidadania planetária, como a taxação do dinheiro especulativo e dos paraísos fiscais. Em um momento em que tudo parece convergir para o terrorismo na agenda dos governantes mais poderosos, Lula tocou no câncer do próprio sistema global.

Seria muito ver no ato de Nova York, em si mesmo, algo mais do que foi: um anúncio político cercado de muitos refletores da capital do mundo. Mas a movimentação de Lula no cenário global não se limita a isto. Talvez mais importante tenha sido a formação do bloco IBSA - Índia, Brasil e África do Sul, em Brasília, no ano passado. Um novo bloco Sul-Sul com impacto global? A ver o que vai acontecer no futuro próximo.

É claro, as movimentações globais de Lula têm suas contradições. Até que ponto a agenda comercial, do acesso a mercados para os nossos capitalistas tupiniquins, não está perturbando o que pode vir a ser uma agenda de desenvolvimento e de multitalteralismo baseado na justiça global e na solidariedade, ainda não está evidente. Mas o fato é que saímos da situação que nos empurraram os governos anteriores (particularmente durante os mandatos tucanos), de seguir direitinho a cartilha do neoliberalismo para ser aceito no reservado clube do G-8. Não estará o presidente Lula preparando um ambiente externo, econômico e político, mais propício para nosso desenvolvimento e o de outros povos?

Cândido Grzybowski é diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase)