Título: O Brasil precisa de urânio enriquecido
Autor: Joaquim Francisco de Carvalho
Fonte: Jornal do Brasil, 20/10/2004, Opinião, p. A-11

No início de agosto de 1945, com o lançamento de duas bombas de fissão nuclear, os Estados Unidos promoveram um genocídio no Japão, com o trágico saldo imediato 220 mil mortes. A primeira daquelas bombas - que era de urânio 235, e tinha a potência explosiva de 13 quilotons (13 mil toneladas de TNT) - caiu no dia 6 sobre Hiroshima. A outra - de plutônio 239, com 19 quilotons - caiu três dias depois sobre Nagasaki. A partir daí agravou-se a rivalidade entre os Estados Unidos e a União Soviética, que acelerou seu programa e testou a primeira bomba de fissão em 1949.

Sempre na dianteira, os americanos explodiram em 1951 a primeira bomba de hidrogênio (fusão). Em 1952 os britânicos entraram na corrida, com uma bomba de fissão. E em 1954 os americanos anunciaram a ''doutrina da dissuasão'', que acabou criando um clima de desconfiança e hostilidade nas relações internacionais.

Em 1960 os franceses testaram sua primeira bomba de fissão. Em seguida vieram os chineses, indianos, paquistaneses, israelenses...

No Brasil, a opinião pública desaprova as armas nucleares, que de resto são banidas pela Constituição (Artigo 21, item XXIII - a). Assim, é incompreensível que o secretário de Estado norte-americano, Collin Powell, venha ao Brasil, como fez há poucas semanas, com o objetivo de fazer pressão, para que o Brasil adira a um protocolo adicional ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), abrindo nossas instalações nucleares a inspeções visuais de funcionários da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). A viagem foi ociosa, porque o TNP já confere à AIEA plenos poderes para inspecionar, controlar e inventariar rigorosamente os materiais radioativos que entram e saem das instalações nucleares brasileiras. Para isso, não é necessário que funcionários da agência tenham acesso a dispositivos mecânicos e eletromagnéticos desenvolvidos por pesquisadores do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN) e da Marinha Brasileira, da mesma forma como não é necessário que se conheçam detalhes internos de um motor de automóvel, para controlar e inventariar seu consumo de gasolina.

Quais seriam, então, os reais motivos das pressões exercidas pelos norte-americanos?

A energia nuclear é indispensável à vida moderna, seja na medicina (aplicações de radioisótopos em diagnósticos e em diversas terapias), seja no setor industrial (por exemplo, em testes por gamagrafia, para a detecção e controle de falhas, em construção mecânica, na fabricação de peças e componentes para aeronaves, etc.). Também na agricultura, os radioisótopos são usados, especialmente para o estudo do metabolismo de plantas e animais.

O uso mais notório da energia nuclear é em usinas elétricas como as de Angra dos Reis, nas quais o calor liberado por uma reação de fissão é empregado para aquecer água e produzir vapor, sendo que daí em diante tudo se passa exatamente como numa central termoelétrica convencional, a carvão, óleo ou gás, ou seja, o vapor faz girar uma turbina, que aciona um gerador de eletricidade.

O ponto de partida para todos os usos da energia nuclear é o enriquecimento do urânio, pelo qual se obtém um material que permite a manutenção de reações de fissão sustentadas em cadeia. No processo de enriquecimento, o óxido contido no minério natural, com um teor de apenas 0,7% do isótopo físsil (urânio 235), é purificado, concentrado e convertido no gás hexafluoreto de urânio. Depois segue para uma instalação que enriquece aquele teor até concentrações adequadas ao uso pretendido (para reatores eletronucleares moderados a água comum, como os de Angra, a concentração é de aproximadamente 3,5%). Em seguida, o hexafluoreto é reconvertido em óxido e vai para a fábrica de elementos combustíveis.

Se o uso pretendido for um reator de propulsão naval, ou um reator de produção de radioisótopos, o enriquecimento deve chegar a 20% ou mais. Para artefatos bélicos como os que destruíram Hiroshima e Nagasaki, deve-se ter no mínimo 95%. A instalação montada em Rezende foi projetada para enriquecer urânio até 3,5%.

Ninguém vende tecnologia de enriquecimento de urânio. Haja vista o caso dos alemães, que, para negociar o acordo nuclear, prometeram transferir-nos a tecnologia de ultracentrifugação, que desenvolveram com os ingleses e os holandeses. No entanto, às vésperas da assinatura do acordo, eles vieram com o processo do jato centrífugo, que não funciona em escala industrial, obrigando-nos, mais tarde, a desenvolver autonomamente a agora cobiçada tecnologia da ultracentrifugação.

Por estar na base de todas as aplicações da energia nuclear, a tecnologia de enriquecimento de urânio tem uma importância estratégica que, claro está, reflete-se em seu valor comercial. Só no ano passado, o comércio mundial de urânio enriquecido movimentou cerca de US$ 20 bilhões.

Isso talvez explique as pressões para que o Brasil abra as portas de sua instalação de enriquecimento.

Joaquim Francisco de Carvalho, licenciado em física e mestre em engenharia nuclear, é consultor na área de energia