Título: Veja a íntegra da `Carta de Campinas¿
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 28/05/2005, Economia e Negócios, p. A18
A economia brasileira patina há um quarto de século. A crise das dívidas transformou os anos de 1980 na década perdida. A década seguinte foi ainda mais funesta: a agenda neoliberal foi adotada e vendida como programa de ¿modernização¿ da nação. O que resultou disso foi o aumento da vulnerabilidade externa e o aprofundamento da secular desigualdade social do país. A vitória de Lula nas eleições de 2002 acenou para a possibilidade de inversão dessa trajetória, mas o novo governo não apresentou um projeto alternativo à agenda neoliberal. A submissão incondicional da economia brasileira aos movimentos do capital financeiro destruiu mais esta esperança. A política monetária ortodoxa, que, em ambiente de câmbio flexível e forte presença de preços administrados, pretende controlar a inflação por meio de um modelo de metas, sufoca a possibilidade de crescimento sustentado, pois o próprio crescimento aparece como variável desestabilizadora e provoca imediatos aumentos de uma taxa de juros já muito elevada. A sociedade não pode mais tolerar que se troque o emprego dos brasileiros pelo sucesso dessa política. Ao contrário, é preciso renegociar as políticas de reajuste dos preços dos monopólios privados de serviços de utilidade pública e restaurar o controle sobre a política cambial, abolindo a livre movimentação de capitais a curto prazo.
O controle sobre os fluxos de capital é também condição fundamental para que o Brasil consiga se livrar da armadilha da vulnerabilidade externa. Mesmo com resultados promissores na conta corrente, o País ainda não conseguiu livrar-se dessa armadilha, já que a liberdade desses fluxos, combinada à maior taxa de juros do planeta, produz apreciação da moeda nacional em resposta à intensificação da entrada de divisas. O governo nada faz frente a esse temerário movimento do câmbio, porque o aumento do estoque de reservas custa muito caro aos cofres públicos, dado o desmesurado preço do serviço da dívida, e porque interessa a utilização do câmbio como âncora do sistema de preços. Fecha-se assim o círculo vicioso da ¿credibilidade¿ que aprisiona a economia brasileira e assenta em areia movediça seus ¿fundamentos¿.
A camisa-de-força da macroeconomia reduz a política econômica à agenda micro, à melhoria do ¿ambiente de negócios¿, às reformas institucionais que buscam ¿garantir os contratos¿, às iniciativas para mostrar o país como lugar seguro para os investimentos estrangeiros. À preocupação com as reformas microeconômicas corresponde o descaso com a produção e a demanda.
Os investimentos não deslancham, o consumo é tolhido pelo desemprego e pela queda dos rendimentos do trabalho, e os gastos públicos são constrangidos por superávits primários draconianos. Comprimem-se os gastos sociais e investimentos públicos de um lado, para que de outro sejam abundantemente contemplados os interesses rentistas das elites. É preciso reverter imediatamente esta política que produz uma alocação perversa dos recursos públicos, impedindo o desenvolvimento da infraestrutura do país e condenando os gastos sociais a uma dieta rígida, que impossibilita o necessário aumento da oferta de bens públicos e a melhoria de sua qualidade.
A política social não sofre apenas com a escassez de recursos. A adesão irrestrita ao receituário neoliberal torna-a também equivocada, consagrando a fratura social mais do que a atenuando. É preciso resgatar o verdadeiro sentido dessa política, colocando-a no caminho do solidarismo e da universalização dos bens públicos que constituem sua essência.
Finalmente, a ausência de um projeto nacional de desenvolvimento deixa intocada a conformação patrimonial e de renda do país. A estrutura tributária continua regressiva e a reforma agrária não sai do lugar. É necessário atacar imediatamente esses problemas, implementando mudanças que permitam a progressividade efetiva dos tributos e autorizando medidas, que há muito já existem, para que se comece a reverter uma estrutura agrária absolutamente inaceitável.
Todas essas medidas só se tornarão possíveis se o modelo neoliberal for abandonado. Como o governo Lula nada fez para sinalizar essa alteração de rota, tendo ao contrário aprofundado ainda mais as amarras que prendem o país aos imperativos desse modelo, o custo da reversão é hoje muito mais elevado. Mas à manutenção de uma situação econômica deplorável somam-se hoje o esgarçamento do tecido social e o aumento da tensão política produzidos fundamentalmente pela anomia na gestão da política econômica. Assim, para que o país não se afunde em uma crise institucional mais grave, é preciso enfrentar esse desafio e promover a imediata alteração da atual política econômica.
O governo tem justificado sua opção não apenas com o argumento de que não há outra saída, mas com a pregação de que este é o caminho correto, ¿cientificamente comprovado¿, o único coerente com os supostos fundamentos da ciência econômica.
Os economistas reunidos no 10º Encontro da Sociedade Brasileira de Economia Política, em Campinas (SP), vêm a público manifestar sua discordância da política econômica como um todo e sua indignação com os caminhos tomados pelo país num governo outrora considerado tão promissor do ponto de vista da construção da nação e da afirmação de sua soberania. Reiteram que não há paradigma único em ciência econômica, assim como não há caminho único em política econômica.
Alternativas existem hoje, como existiam há dois anos e meio. Ter optado pelo curso que levou à atual situação foi uma questão de escolha política e perseverar nele significa compactuar com a mesma agenda anti-social e antinacional aberta nos anos de 1990.