Título: Páginas da eternidade
Autor: Alexandre Werneck
Fonte: Jornal do Brasil, 20/10/2004, Caderno B, p. B-1
Não seria muito exagero dizer que Matthew Battles é capaz de ler 5 milhões de obras ao mesmo tempo. O historiador americano se tornou nos últimos anos um reconhecido mestre na leitura de coleções de livros, sobretudo depois da publicação de Conturbada história das bibliotecas, lançada no Brasil em 2003, pela Planeta. Desde então, roda o mundo, munido de sua experiência como ex-funcionário de Widener, em Harvard, a maior coleção de textos acadêmicos do mundo (é a tal com 4,6 milhões de volumes), e de seu atual emprego em Houghton, na mesma universidade. Fala de livros e de acervos deles, como fez ontem, no Centro Cultural Banco do Brasil, em um encontro com o bibliófilo paulista José Mindlin. Em sua curta passagem pelo Rio, foi a lançamento de livros, passeou num shopping e andou na praia. No meio do turismo, arrumou tempo para fazer aquilo que mais gosta de fazer: ir a uma biblioteca. A pedido do Jornal do Brasil, a Biblioteca Nacional, o maior acervo de publicações da América Latina, abriu suas portas para o pesquisador. Impressionado com o prédio de estilo eclético que recebe mais de 15 mil visitantes por mês, ele diz que o local é um exemplo de biblioteca que serve como tempo da leitura e admite que a história das bibliotecas passou por um modelo mais impessoal, frio. - No começo do século 18, os bibliotecários ficaram muito interessados na metáfora da biblioteca como fábrica. Eles diziam que colocar livros e pessoas juntos era um processo industrial e que leitores eram o produto dessa fabricação. Com isso, elas se afastaram da idéia de biblioteca como templo, uma igreja.
Na comparação do edifício da Biblioteca Nacional com espaços como a Widener, em que enormes andaimes de aço ao mesmo tempo sustentam o prédio e os livros, ou como a Biblioteca Nacional Francesa, de arquitetura fria e formal, ele admite que hoje ainda há um risco de afastamento entre pessoas e acervos, como já houve em outros tempos.
- É irônico, mas, no começo, as bibliotecas foram feitas para manter as pessoas longe dos livros, porque eles eram muito caros, raros e difíceis de fazer. Na vida moderna, à medida que o livro se tornou um objeto banal, essa história se inverteu. As bibliotecas passaram a ter a missão de pôr os livros nas mãos das pessoas. É uma importante função, mas que está em perigo em nosso tempo, por conta da burocratização dos acervos.
Entretanto, ele mesmo se apressa em apontar uma onda de resistência:
- É impressionante, mas justamente na era dos computadores, as bibliotecas estão retomando essa dimensão templária. Várias delas estão se tornando museus de celebração do livro. A nova Britsh Library, em Londres, ganhou uma enorme área de exposição, com mostras interativas e campanhas para encorajar pessoas a fazerem visitas. O mesmo acontece com a Biblioteca Pública de Seattle, nos Estados Unidos. Esta biblioteca, por exemplo, no coração do Centro do Rio, é um lugar de celebração do livro e para se pensar na importância do livro na vida das pessoas.
O passeio pela BN começa com uma visita ao acervo de livros do local, em que volumes repousam em estantes que atravessam andares. Emocionado diante de tantos livros, ele não se incomoda em rediscutir um tema que constantemente recai sobre sua mesa: o livro vai deixar de existir no século 21, com a chegada de tantos novos meios digitais de transmissão e armazenamento de informação? Ele, como bom esquerdista que é (sua descrição de Bush não é muito gentil), lança uma teoria bem politizada:
- Falamos muito hoje de quanta informação temos a nossa disposição. Temos TV, internet, filmes, rádio, jornais e revistas. Entretanto, essas informações são controladas. Compramos informação como produtos. E isso em grande parte faz com que nossos desejos sejam modulados, quase dirigidos, pelos produtores dessas informações. As bibliotecas, ao contrário, servem como uma experiência não midiatizada e não imediata de acesso à informação, o que pode ser mais libertador.
Logo depois, entretanto, ele parte para um diagnóstico bastante mais afetivo:
- Os livros vão se manter como objeto de uso por muito tempo ainda, porque eles são uma tecnologia simples e sobretudo são uma tecnologia adorável. Os computadores não são assim. O livro vai mudar e nossa relação com ele também, mas ele vai conosco.
O que leva ao clichê de que as bibliotecas são comparáveis e podem ser substituídas, no futuro, pelos buscadores de internet, que tem a capacidade de selecionar informação e facilitar a vida de quem pesquisa. Diante da idéia, ele tem uma resposta para longo prazo: a internet é incapaz de cultivar a memória.
- Uma biblioteca preserva o que é ruim tanto quanto preserva o que é bom, até porque o conceito de bom e de ruim varia ao longo do tempo. Na internet, é diferente, há um sistema de seleção e manutenção baseado na funcionalidade. A informação que não usamos tende a desaparecer. E não saberemos, daqui a 25 anos, como o material de qualidade se tornou material de qualidade. Não poderemos fazer a história desse pensamento. Pois quando olhamos para trás em uma biblioteca, e vemos, por exemplo, Guerra e paz, de Leon Tolstói, podemos ver também os textos menores da literatura russa da mesma época e historiar as idéias de então, como as pessoas viam o mundo e a literatura e entendemos como aquele livro se tornou o que se tornou. As bibliotecas fazem arqueologia e os livros ruins e os bons têm a mesma importância para que entendamos nosso passado.