Título: Caranguejos mortos, o motorista e o pálido Fidel
Autor: Laura Zelenko
Fonte: Jornal do Brasil, 29/05/2005, Internacional, p. A15

Volta pelo país mostra criatividade dos cubanos para driblar dificuldades

HAVANA - Há uma festa na cidade caribenha de Gerona, na Ilha da Juventude de Cuba. Carroças puxadas por cavalos e ciclotáxis levam os participantes para a área de lazer ao ar livre, onde jovens cubanos tomam sua cervejinha e se reúnem para conversar. Pais caminham de mãos dadas com os filhos, parando numa ponte para bater papo com velhos amigos ou para participar de tradicionais jogos de quermesse, como arremesso de argolas para acertar uma garrafa. De todas as esquinas ecoa um som ensurdecedor de música disco, e altos carros alegóricos cambaleantes assomam, à distância, transportando adolescentes que requebram e rodopiam de biquíni e adereços de cabeça cintilantes. É, como tudo o mais em Cuba, um lugar congelado no tempo, tranqüilo, nostálgico, inocente - alheio a tudo o que possa deixar de ser.

Gerona não é um lugar tradicionalmente turístico, é uma parada intermediária para os turistas que vêm de Havana, que em seguida percorrerão uma desolada estrada rumo a um quase abandonado hotel à beira-mar, The Colony, de onde são organizadas excursões para um lugar excelente para mergulho em profundidade ou com snorkel.

Duas mulheres hospedadas no hotel The Colony mas ansiosas por vivenciar uma noite na cidade precisam articular um plano engenhoso. Os funcionários do hotel não dispõem de quaisquer informações oficiais e de nenhum interesse especial em ajudar a providenciar meios de transporte. Finalmente a recepcionista chama um amigo que concorda em levá-las, com seu Lada russo, a Gerona, por US$ 30, com volta marcada para às 2h da manhã.

Para não perder a oportunidade, o motorista começa a viagem estacionando o carro nos fundos do hotel. Em plena vista de um guarda de segurança, uma mulher saca depressa um balde tampado, que disfarça certa quantidade de carne em seu interior, e o coloca no porta-malas. Sua manobra é um lembrete da escassez que assola Cuba. Em várias ocasiões, graças às políticas locais e ao embargo imposto pelos Estados Unidos, produtos básicos como carne, sabão, papel higiênico, pasta de dente e escovas de dente são difíceis de conseguir. Os habitantes ficam gratos quando os turistas lhes oferecem canetas ou tabletes de caldo de carne.

O motorista faz um pequeno desvio ao sair do lugar, pegando uma estrada lateral para encontrar um homem numa lambreta, que descarrega o balde com carne, coloca-a entre os pés, sobre a plataforma do veículo, e sorri, acenando, ao afastar-se.

Surpreendentemente, Gerona poderia ser confundida com uma cidade de classe média, comparativamente a outras áreas urbanas de Cuba. Um dos porteiros do hotel à beira-mar, sua mulher, advogada, e seu filho de 6 anos recebem as turistas para o jantar em seu apartamento, ao qual se chega por uma escada caindo aos pedaços num conjunto de prédios de apartamento ao estilo soviético. Ele segue a prática comum dos cubanos de oferecer uma refeição a um visitante e aceitar depois qualquer contribuição que ele queira dar.

O casal tem uma televisão (ligada naquela noite na transmissão de um discurso do presidente Fidel Castro), um aparelho de CD e uma cozinha abarrotada de frutas, frango, pão e verduras. O único sinal evidente de escassez está no banheiro, onde páginas de um livro russo foram transformadas em papel higiênico.

O casal não anseia por viajar - ambos estão satisfeitos com a vida simples que levam e não se preocupam com a alimentação básica, educação e assistência médica. Sua apreensão: o que acontecerá com Cuba quando Fidel morrer?

Mesmo nas regiões pobres de Cuba, a julgar por uma viagem de uma semana, a vida parece desenvolver-se com uma tranqüilidade difícil de encontrar nos malvistos bairros da América Latina.

Em Trinidad, uma cidade histórica de ruas de paralelepípedo e construções em tons pastel, as famílias se apinham em casas de estuque sem água e com energia elétrica intermitente. Mas, pelo menos diante de um turista, há poucas reclamações.

Na parede de uma das casas está pichada a saudação ''Viva Fidel'' e, dentro, uma mulher meio gordinha se desculpa por não ter nada a oferecer às visitas. A rua em que mora não é asfaltada, sua filha está com sede e seu maior desejo é ter roupa nova - mas ela não tem queixas. Todos os dias, veste a filha com o uniforme, leva-a à escola, ali perto, e está começando uma reforma na casa.

Em Cuba, não é à toa que um turista americano não desperte a empolgação e a inveja que era comum no Leste Europeu na década de 1980. Mas também não há animosidade - apenas contra o governo de George Bush. Para os cubanos, ao que parece, o turista ideal é o brasileiro, que corporifica Lula, o samba e o que as pessoas imaginam ser uma vida boa.

A decadência do sistema não salta tanto à vista nas pessoas quanto nas edificações e ruas, desesperadamente carentes de investimentos, e nos pedidos que qualquer criança ou adulto pode vir a fazer - principalmente por roupas, de qualquer cor ou tamanho. Os cubanos, despudoradamente vaidosos, levam a vestimenta a sério.

Como também levam a sério os seus heróis. Primeiramente, Che Guevara, cujo famoso rosto revolucionário aparece estampado em camisetas, chapéus e outras peças procuradas avidamente em hotéis de praia e lojas das cidades. E também, é claro, Ernest Hemingway, o escritor beberrão que parece ter freqüentado quase todos os bares da cidade. Um malandro que queira seduzir um turista certamente vai prometer levá-lo a um desses seus botecos habituais.

Embora Fidel tenha deixado de fumar, os charutos ainda são objeto de entusiásticas baforadas em Cuba. Várias imagens ficam na cabeça: um velho de terno branco engomado, fumando à porta de uma fábrica de rum no centro histórico; um homem barbudo sentado nos degraus da catedral de Havana ao lado de uma mulher coberta de jóias ciganas, ambos com charutos pendendo da boca; uma senhora de idade com cara de guaxinim em roupas de cores primárias e com grandes óculos de sol redondos que tira umas baforadas na calçada de um dos verdadeiros xodós de Hemingway, La Bodeguita del Medio.

Os cubanos dizem que têm novos e muitos amigos: Hugo Chávez, da Venezuela, que está mandando petróleo, Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, que fornece eletrodomésticos, e a China, que presta qualquer ajuda possível.

Na Cuba de Fidel, um visitante pode encontrar luxo - no Hotel Nacional de Havana. Os famosos membros do Buena Vista Social Club tocam regularmente nesse hotel tradicional, barmen servem mojitos e piñas-coladas sob as palmeiras do terraço, e um adicional de US$ 5 garante ao turista acesso à academia e à sauna.

O mais interessante é se desgarrar dos surrados caminhos turísticos e dar um giro por conta própria - por mais difícil que essa empreitada possa ser.

Quando estamos percorrendo a rodovia ladeada de plantações de cana-de-açúcar da Havana a Trinidad, o motorista do táxi dobra-se de dor. Ele desce do carro e deixa uma passageira assumir a direção, instruindo-a a voltar para a última alça de acesso e procurar ajuda na cidade mais próxima. Chegando lá, duas enfermeiras de um posto de saúde dizem que não podem ajudá-lo e nos mandam para um hospital a 15 minutos dali, numa cidadezinha perdida chamada Aguada. Agora o motorista já está suando em bicas. Ele tem um problema de pressão sangüínea, diz, ofegante. Sua esposa, que por acaso tinha decidido acompanhar seu marido na viagem de quatro horas, parece nervosa.

O hospital de Aguada não tem água, mas tem oxigênio. Uma enfermeira ajuda o motorista a sentar-se, leva-o a um quarto e o conecta a um balão.

Do lado de fora, um policial local passeia para lá e para cá para garantir a segurança das duas estrangeiras. Um funcionário do hospital chega para jogar conversa fora. Três mulheres com bebês mal nutridos, chorando, no colo, pedem para tirarmos fotos delas. Bicicletas e cavalos passam. Chega o lusco-fusco do fim da tarde. A mulher do motorista providencia outro táxi e se despede dizendo que seu marido em breve estará bem.

Finalmente o novo motorista chega e leva as turistas para um tour noturno de três horas na direção da praia, disparando por uma estrada coberta de caranguejos mortos. Um deles provoca um furo no pneu e o motorista pára e troca o pneu à luz da lua como se isso fizesse parte de sua rotina diária. Aguada some na distância e em pouco tempo reingressamos na região turística.

De Havana a Gerona, de Aguada a Trinidad, o cubano médio parece suficientemente satisfeito (e suficientemente sensato para não clamar ruidosamente por mudança). Fidel, de 78 anos, envelhecido e trôpego, se assegura de que tanto os turistas quanto os cidadãos conheçam suas palavras de ordem, disseminadas nos únicos outdoors que ornam as rodovias cubanas: ''Nação ou Morte'', ''A Luta Continua'' e ''Um mundo melhor é possível''. Como é que se chegará a essas três coisas, ninguém sabe.