Título: Esperança ou discórdia?
Autor: Estevão de Rezende Martins
Fonte: Jornal do Brasil, 29/05/2005, Internacional, p. A14

A União Européia (UE) reúne hoje 25 países. Outros dois aderem até 2007. O tratado de adesão da Romênia e da Bulgária foi assinado há pouco. A Turquia está na fila. O projeto de reconstrução de um espaço de paz e de prosperidade, em constante desenvolvimento e reordenamento, existe há 50 anos. Depois da queda do Muro de Berlim, as Comunidades Européias nascidas na perspectiva econômica e comercial e transformada em porto seguro, tornaram-se referência e objetivo. Seu crescimento também tornou-se um possível fator de risco. A complexidade institucional e prática de gerir um conjunto de 25 Estados impôs a necessidade de pôr a casa em ordem. Em 2001 os chefes de Estado e de Governo dos 15 membros de então decidiram convocar uma convenção, a funcionar durante o ano de 2003, para propor uma nova arquitetura da União. Participaram os dez candidatos que ingressaram oficialmente em 1º de maio de 2004. O projeto de tratado constitucional da UE ficou pronto em finais de 2002. Os chefes de Estado e de Governo adotaram o projeto revisto em 2003 e os 25 membros assinaram solenemente o Tratado no dia 29 de outubro de 2004, acompanhados pelos três Estados candidatos.

Por que se precisa de um tratado constitucional? Por uma razão bem simples: uma organização de 25 (27 em breve) Estados exige revisão de modos de agir e decidir que vinham sendo utilizados desde o início da história da UE, ainda antes dos Tratados de Roma de 1957. Fundamentalmente tornou-se imperativo viabilizar a arquitetura institucional, a partilha das obrigações entre o bloco e seus membros e consolidar o modo de funcionamento da justiça e das políticas, em especial a política externa e de segurança.

Pela primeira vez um esforço ingente de assembléia ¿ que se pode chamar de constituinte¿ produziu um texto organizado que assume todos os Tratados precedentes e a Carta dos Direitos Fundamentais (que se tornou a 2ª parte da Constituição). A primeira parte define a UE e todas as suas atribuições. A terceira organiza as políticas administrativa, econômica, social, cultural, interna e externa da União. A quarta e última trata, dentre outras disposições, dos procedimentos decisórios internos à União, notadamente a revisão da própria Constituição.

É o primeiro tratado a colocar no centro de suas prioridades o espaço social da cidadania e a referência cultural da identidade européia. Pela primeira vez clarifica-se o funcionamento do princípio da subsidiaridade (o que um faz [por exemplo: a União], os outros não precisam fazer [os Estados-membros] ) e fixa-se com clareza regras para o processo decisório, combinando três grandes fatores: o número de votantes, o tamanho da população e a natureza do assunto em pauta. Reforça-se o papel da participação democrática ¿ cujo déficit era criticado ¿ pelo estabelecimento de competências estendidas ao Parlamento Europeu e de coordenação e cooperação com os parlamentos nacionais.

O texto é obviamente fruto de laborioso processo de negociação política, de que participaram, em pé de igualdade, todos os interessados. Certamente por intermédio de seus representantes institucionais, os titulares de mandato parlamentar (deputados e senadores escolhidos pelos Parlamentos), os membros dos governos dos Estados-membros e os designados, dentre os integrantes da sociedade civil.

Um amplo leque de representatividade, a suscitar a admiração de muitas regiões do mundo, sobretudo pela disposição em ceder e compor, em convergir e transigir, em nome do objetivo maior dos princípios e valores da comunidade transnacional da UE. A Constituição que se quer precisa, para entrar em vigor, de ser ratificada pelos Estados-membros, um a um. Essa ratificação vem ocorrendo ao longo de 2005. Até 25 de maio, nove Estados já haviam feito isso. A entrada em vigor está prevista para 1º de novembro de 2006, quando todos tiverem assinado.

A Constituição vem causando polêmica nos espaços nacionais, em especial na França, um dos países fundadores da Comunidade inicial, a de 1957. Já antes fora uma das fundadoras da Comunidade Européia do Carvão e do Aço. Por sua importância política na história da UE, a França é um farol de sinais relevantes para o caminho da ratificação.

É lamentável que o debate sobre o Tratado, na França, esteja contaminado por um amálgama de interesses políticos menores, manifestamente inspirado por questões de política interior e por ambições particulares de políticos cuja visão parece ter sido atingida por uma miopia de alto risco. Não se pode prejulgar, mas o resultado do referendo pode representar tanto um impulso positivo de grande eficácia (caso favorável), como um baque descabido no processo de crescimento da União. O pomo da discórdia que o texto parece representar (não só na França, mas também na Holanda ou na Grã-Bretanha) nada tem a ver com sua própria lógica interna ou com o sentido de seus dispositivos.

Pelo contrário: em muitos anos não se conseguia um avanço institucional tão significativo (mesmo se não ideal ¿ aliás, o ótimo é inimigo do bom!). A UE encontrou (ou reencontrou) o caminho da concretização de suas esperanças. E o mundo o vê assim. O Tratado Constitucional é um sinal forte de sensibilidade social, de participação cidadã e de qualidade política. Fruto da perseverança, da paciência, da prudência e da persistência. Tanto para dentro quanto para fora, a União sai fortalecida sem prejudicar seus membros, e estes têm sua vontade como o único esteio da força da União.