Título: Além do Fato: A França à procura da Europa
Autor: Michel Rocard
Fonte: Jornal do Brasil, 29/05/2005, Internacional, p. A13

PARIS - Com seus dez novos membros, a União Européia compreende 25 países e 453 milhões de cidadãos. À luz do fato de que durante o milênio passado os integrantes da UE lutaram inúmeras guerras uns contra os outros, e que por mais de 45 anos a Guerra Fria dividiu o continente em dois blocos hostis, hoje a Europa é um sucesso de significância histórica monumental. Além disso, a UE representa muitas coisas simultaneamente. Primeiro, é uma garantia para a paz: a guerra agora é tecnicamente impossivel entre os integrantes interligados do bloco.

Mais ainda, a União Européia é um majestoso instrumento de reconciliação nacional. Alemães e franceses, que há 60 anos amavam tanto uns aos outros quanto os sérvios e os bósnios na atualidade, vivem um casamento estável e feliz. Católicos e protestantes na Irlanda estiveram se matando por mais de um século, mas agora, como participantes desse conjunto, finalmente tiveram de reconhecer a idiotia de seu conflito e a inevitabilidade, de novo, da reconciliação. Húngaros e romenos, depois de nove séculos de ódio e guerras, estão engajados agora no mesmo processo. A Grécia decidiu recentemente apoiar a abertura de negociações que permitam a entrada da Turquia no bloco, nos próximos 12 anos.

Tal união teve também o significado de trazer prosperidade, sobretudo em função de ser um mecanismo efetivo para que seus membros menos favorecidos possam superar as históricas e difíceis barreiras do desenvolvimento. Irlanda e Grécia, há alguns anos atrás os dois países mais pobres da Europa, ressurgiram economicamente, com Atenas se aproximando dos níveis de vida dos restantes dos europeus e Dublin consolidando sua posição entre os mais ricos do bloco.

Por essas razões, países que estão fora da União Européia querem fazer parte dela. Em menos de dois anos, isso se tornará realidade para Bulgária e Romênia, enquanto as negociações estão começando com a Croácia e a Turquia. Há, ainda, conversas sobre a abertura para a Sérvia e para a Ucrânia. Para cada um desses países, ser um membro do clube significa poder gozar de uma paz estável com os vizinhos e oferecer uma reconciliação interna, tanto quanto um notável crescimento econômico.

Todo o exposto acima demarca um certo nível de instabilidade, particularmente se a expansão é realizada pela negociação entre governos, muito mais do que por escolhas democráticas. O projeto da nova Constituição Européia foi concebido para remediar esse problema entre os países do bloco. E justo a França, que deveria ratificar a Carta no referendo de hoje, dá a impressão de querer votar contra ele. Se o fizer, o resultado será um verdadeiro terremoto.

Embora cada nação membro do bloco continental tenha jogado seu papel na integração européia, a França tem sido, sem dúvida, o país que acrescentou a maioria das idéias e os principais alicerces e projetistas do escopo político que a sustenta.

Então, o que estaria acontecendo? Na França, assim como em toda a Europa, tem havido espaço para os velhos nacionalistas, aqueles ¿soberanistas¿ que dizem não à Europa em defesa da nação. Mas se eles pertencem à extrema direita ou à esquerda comunista, representam rarefeitos 20% do eleitorado. Além e acima deles, dois fatores explicam o bizarro fenômeno capturado pelas pesquisas de opinião realizadas na França nas últimas semanas.

O primeiro é o fato de que o francês tem contas a acertar com seu presidente e o governo. Jacques Chirac foi reeleito para o Palácio Eliseu com 82% dos votos em função da ameaça da extrema direita. De acordo com essa evidência, metade desses votos veio da esquerda. Mas Chirac agiu em seu mandato como se tivesse obtido uma vitória inequívoca e nomeou um dos mais conservadores governos que o país já viu no último meio século. ¿Vamos fazer o pobre pagar¿ era a ordem fiscal do dia no gabinete, que acabou por gerar denúncias de usurpação e por incitar muitos dos cidadãos do país a votar no referendo seguindo sua raiva.

O outro fator vem do fato de que a França, como o resto do mundo, sofre com as mazelas geradas pela globalização. Como resultado, o país pena com uma crescente desigualdade, alta e progressiva taxa de desemprego, com constantes reestruturações de empresas que afetam serviços públicos e à Previdência e com uma sensação geral de insegurança. O mundo vive sob maciça desregulamentação prescrita pela doutrina monetarista apoiada pelas forças conservadoras dominantes nos países desenvolvidos na América do Norte, Europa e Ásia. Esse tsunami econômico nos atingiu vindo dos Estados Unidos não há nada de bom nele para a Europa, embora as forças de direita em todos os nossos países, que formam a maioria dos governos no continente, tenham se unido para apoiá-lo.

É o desejo de rejeitar esse estado de coisas que, acima de tudo, explica o índice para o ¿não¿ e os gritos que muitos franceses estão dando. Mas levar isso a cabo seria um grande erro. Só a Europa como um todo, focada politicamente na idéia de uma melhor regulamentação, é suficientemente forte para enfrentar o tsunami neoliberal. Mas é preciso clareza doutrinária e forte vontade política. A rejeição à Carta Européia certamente vai matar o dinamismo europeu e enfraquecer a capacidade do continente de se defender. O debate na França ainda está se espalhando e nada está perdido. O povo francês ainda tem tempo de se unir ¿ e as pesquisas de opinião sugerem que isso está começando a acontecer. A Europa merece. (Project Syndicate)