Título: Direita e esquerda: a política de Lula
Autor: Roberto Saturnino Braga
Fonte: Jornal do Brasil, 29/05/2005, Opinião, p. A12

O presidente Lula vai caminhando no ritmo da democracia, não da revolução, acabando com as privatizações, aprofundando os programas sociais, caindo fora do FMI

Quero começar dizendo que em toda questão política há, necessariamente, posições de opinião que se caracterizam como de direita e de esquerda, queiram ou não os novos cientistas. E, mais, que as posições conservadoras, que sustentam a impossibilidade ou inconveniência de mudanças substanciais, são de direita, e, obviamente, as posições contrárias, que postulam as mudanças, notadamente voltadas para a distribuição mais justa da riqueza e do poder, são de esquerda. E, ainda, principalmente, que toda negativa de diferenciação entre direita e esquerda, pretendendo transformar questões de fins em questões de meios, polêmicas políticas em problemas administrativos (o saber fazer as coisas), é uma posição de direita, que se nega a enxergar a profundidade das questões para superficializar as possibilidades de mudança; que nega no fundo a própria política para afirmar a ciência (da economia ou da administração). Esta é, aliás, a nova dimensão da direita, revivendo o positivismo com uma redução da economia política e da gestão política à ciência econômica e administrativa.

Criticar a política externa do governo Lula sob o argumento de que é perigosa e ingênua, porque o mundo é como está e nunca mudará, no sentido de que o que vale é a força, e os governos espertos, científicos e eficazes, que sabem fazer as coisas, procuram tirar partido da subserviência com certa dignidade sem pretender mudar a configuração - é claramente uma posição de direita.

Assim, também, de direita são todas as políticas que sustentam que o mercado é, definitivamente, o paradigma, cada vez mais abrangente e decisivo, de organização das economias e das sociedades no mundo, e que pretender mudar esta configuração e desafiar o mercado é ingenuidade, irrealismo e incompetência.

Desenrola-se hoje, na França, uma ampla e profunda polêmica a respeito do projeto de Constituição Européia, constatando-se uma forte resistência à sua aprovação apesar do empenho pessoal do presidente Chirac. À distância é difícil perceber as razões da resistência a algo que seria o coroamento de todo um belo e exemplar esforço entre as nações do velho e sofrido continente para consolidar a união pela paz, pela democracia e pelos direitos humanos. È que o noticiário internacional, comandado por agências conservadoras e interessadas, oculta o fato de que o tal projeto da Carta Européia consagra, nos seus primeiros artigos, o sistema de mercado como sendo objeto constitucional de preservação, como se fosse inerente, condição sine qua do regime democrático e do respeito aos direitos fundamentais. Coisa que os socialistas, sempre fortes na França, e não apenas eles mas também os franceses politicamente conscientes, numerosos, na tradição de cultivo do pensamento filosófico daquele país, não podem aceitar. Não podem aceitar que, contrabandeada na esteira da democracia e dos direitos, venha o que Danielle Mitterrand chama de ''ditadura do mercado'', isso que tem causado tantos e duros danos a enormes e crescentes populações do mundo de hoje, determinando um retrocesso cínico nas políticas públicas, em relação aos avanços éticos do estado de bem-estar.

O Brasil, como de resto toda a América Latina, tem sido vítima dessas imposições direitistas do mercado, chamadas popularmente de exigências do FMI, e elegeu Lula para livrar-se delas. A esquerda venceu no Brasil, como venceu na Argentina, no Uruguai, na Venezuela e vai vencer no México. Mas a democracia não dá saltos e sim passos vagarosos, mesmo que firmes, que exasperam a impaciente esquerda revolucionária. E Lula vai caminhando no ritmo da democracia, não da revolução, acabando com as privatizações, colocando as estatais no trilho desenvolvimentista, caindo fora do FMI, aprofundando os programas sociais - Bolsa-Família, agricultura familiar, reforma agrária, microcrédito, biodiesel, Fundeb - embora no fiscal-monetário continue muito conservador, igualzinho a FHC, por bisonhice do ministro Palocci, que tem medo de fantasma.

Quem sabe, entretanto, seja necessária essa dose de conservadorismo sem que eu perceba? Talvez, para fazer a política externa avançada que vem fazendo, uma política de esquerda, sim, que visa mudar o mundo, seja preciso não confrontar o mercado no fiscal-monetário para não abrir flancos demasiados.

Mudar o mundo - que a esquerda e o Fórum Social acreditam possível, e eu também, socialista há 50 anos - é extremamente importante para o Brasil. Mudar o mundo é restaurar o multilateralismo e a democracia internacional das Nações Unidas; é torná-lo mais igualitário segundo as promessas do século passado; é fazê-lo mais humanístico, enfrentando, para isso, a voracidade do mercado. E estas mudanças, no momento, só o Brasil pode começar a desencadear, organizando a articulação da América do Sul com a África e o mundo árabe, como vem fazendo. As exportações brasileiras batem recordes toda semana, mesmo com um câmbio desfavorável, mostrando o quanto Lula tem sido competente nesta articulação, para horror dos conservadores. Talvez, para tanto, tenha mesmo de andar mais devagar no âmbito interno. Não estou certo, mas depois do sucesso da Cúpula Sul-americana e Árabe tenho pensado muito nisso.