Título: Caminhos da governança
Autor: Cândido Grzybowski
Fonte: Jornal do Brasil, 29/05/2005, Opinião, p. A11

Ao menos no fronte externo, muito do que a gente esperava de um governo Lula está acontecendo. A recém encerrada Cúpula América do Sul-Países Árabes é mais uma iniciativa que merece ser saudada. Foi uma iniciativa ousada? Sem dúvida! Mexeu em leis férreas do status quo e despertou contradições e tensões, tocando em pontos sensíveis de uma governança mundial em crise. Por que, então, saudar algo tão arriscado em termos estratégicos - e cujos desdobramentos imediatos ainda não podem ser avaliados com clareza? A Cúpula teve seus acertos e erros, mas que rompeu com um quadro mais de impasses do que de soluções - isto ninguém pode negar. O Brasil dá o seu empurrão para que surjam novas relações no plano internacional, capazes de contribuir para a reconstrução de um saudável e sustentável multilateralismo, soterrado pelo desmesurado poder e visão estreita dos Estados Unidos. Além do mais, é bom que a Cúpula América do Sul-Países Árabes tenha acontecido quatro meses antes da Cúpula da ONU, prevista para 14 a 16 de setembro próximo, em Nova York. Afinal, são dois blocos de países importantes, por sua população, possibilidades e problemas desafiantes, em qualquer arquitetura da governança mundial neste início do Século 21. O governo Lula - e aqui arriscamos uma hipótese -, com suas várias iniciativas, busca criar um ambiente internacional mais favorável. Este parece ser o sentido da Cúpula recém-realizada, bem como o da Comunidade de Nações da América do Sul, o do Acordo Ibas (Índia, Brasil e África do Sul), o do G-20, a firmeza nas negociações da Alca, do Fundo Contra a Pobreza, da pretensão de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, entre tantas outras ofensivas no plano internacional. Em inúmeros fóruns e redes mundiais, de que participo como diretor do Ibase, não tenho escondido, porém, minhas fundadas dúvidas sobre o potencial democratizador de tais iniciativas - que muitas vezes incluem vistas grossas e até acordos com regimes autoritários que desrespeitam direitos humanos fundamentais. Até que ponto o Brasil não está simplesmente se pautando pela agenda dominante, usando seu poder emergente para expandir seus mercados, deixando para segundo plano a democracia e o desenvolvimento includente para nós e nossos parceiros? É mais do que revelador, por exemplo, que a Carta de Brasília, da Cúpula América do Sul-Países Árabes, nem menção faça à fundamental questão da democracia. Atropelar princípios e valores básicos, pelos quais lutamos e sofremos muito aqui no Brasil e na América Latina, é daqueles pragmatismos que mais cedo do que se pensa limitam e podem até anular ganhos políticos duros de conquistar. Mas seria burrice não reconhecer que, no mínimo, o quadro é novo e desafiante. O momento é de agir e também de ser inovador. As organizações e movimentos da sociedade civil brasileira precisam mudar chaves de leitura e se abrir para novas realidades que tais iniciativas governamentais apontam. Existem enormes potencialidades em todo este contexto externo que as iniciativas do governo Lula introduzem na agenda. No mínimo, saímos daquela postura neoliberal submissa que nos era oferecida como única alternativa possível pelo governo anterior. Aliás, num contexto mundial de crise de governança, o governo Lula, ao menos junto aos movimentos de nascente cidadania mundial, desperta a esperança de que algo possa mudar. O poder constituído não é afetado, mas ele mesmo descobre surpreso que algo se move. Outra governança mundial será possível? Aí a tarefa é também nossa. Não se trata simplesmente de fazer o poder constituído admitir a presença de mais e novos sócios, no Conselho de Segurança, por exemplo. Precisamos trabalhar para refundar democraticamente o poder mundial.