Título: O não e o sim da França
Autor: Emir Sader
Fonte: Jornal do Brasil, 29/05/2005, Opinião, p. A11

Não é uma surpresa que a unificação européia entre em crise na França. Embora o país tenha sido um dos dois grandes protagonistas do processo, junto com a Alemanha, a natureza política e ideológica da França fez com sempre existisse uma forte tensão interna entre a construção de uma autoridade política, econômica e social supranacional e o Estado francês.

A França foi o cenário da construção histórica mais avançada de um Estado nacional, produto da revolução de 1789. A vitória fez de Paris o centro político do país e deu início à construção do Estado republicano que serviu como referência histórica e teórica. Enquanto isso a Inglaterra avançava economicamente, apoiada em um sistema político monárquico, e a Alemanha corria, com o autoritarismo modernizador de Bismarck, para recuperar o atraso econômico em relação às outras potências européias. Se a Alemanha foi o reino da filosofia, a Inglaterra da economia, a França se notabilizou por ser o que Engels chamou de ''laboratório de experiências políticas''.

Desde a revolução de 1789, passando pelas barricadas da de 1848 e pela Comuna de Paris de 1871, a França foi o principal centro de construção do movimento operário e da esquerda. Vítima militar da Alemanha - tanto em 1871, como na Primeira e na Segunda Guerras Mundiais -, a França se tornou parceira de seu adversário, como garantia de que uma Europa unida evitaria uma nova conflagração mundial.

As duas guerras - olhadas à distância, cada vez mais se tornam uma única, separada por alguns anos - consolidaram a decadência da Europa, que criou a víbora do fascismo e do nazismo e não conseguiu derrotá-los sozinho. Teve que apelar para a URSS e o EUA, que ocuparam os lugares principais da cena, em seguida, na bipolaridade mundial instalada desde o fim da Segunda Guerra. A unificação aparecia assim também como uma forma de tentar reconquistar espaço político e econômico no plano mundial, como uma arma de defesa de um continente em retração.

Quando começou a ser articulada, há quase 50 anos, durante a hegemonia do modelo keynesiano, com um continente gozando do pleno emprego, com a economia mundial e européia em particular em recuperação da guerra e em expansão, a unificação tinha um sentido. Quando se concretizou, o ciclo longo expansivo do capitalismo mundial tinha se esgotado, a Europa também entrava em recessão, se impunha o modelo neoliberal, inclusive pelo governo social-democrata francês de François Mitterrand e, mais recentemente, também pelo de Gerard Schröeder - derrotado sucessivamente na Alemanha por sua tentativa de impor um duro ajuste fiscal.

A França, coerente com sua tradição republicana, submeteu o tratado anterior - chamado de Maastrich - à consulta popular, e a rejeição quase triunfou. Desta vez, o ''não'' aparece como favorito, na decisão sobre o Tratado Constitucional Europeu, projetando uma crise sem precedentes na unidade européia, que pode ser consolidada com um resultado similar na Holanda uma semana depois. O caráter neoliberal da nova Carta fica claro com o ataque a direitos fundamentais conquistados historicamente, como o direito ao trabalho, substituído pelo ''direito a trabalhar'', o direito à habitação, pelo ''direito a uma ajuda para a habitação'', e assim por diante. De tal forma, que a expressão ''serviço público'' é substituída, significativamente, pela de ''serviços de interesse econômico geral''.

Além de que se consagra constitucionalmente o papel da OTAN. Nascida na guerra fria, para ''proteger a Europa'', sob o guarda-chuva estadunidense, da URSS, sobreviveu ao fim desta, agora, com a ''doutrina Blair'', para desenvolver ''guerras humanitárias''.

Se for realmente rejeitada hoje, a nova Carta proposta para a Europa coloca todo o processo de unidade em crise, mesmo se outros países a tenham aprovado. Pode permitir uma reflexão muito mais profunda do sentido de um processo de construção de um poder supranacional europeu comandado pelas regras de mercado, pelo ataque a direitos sociais e à subordinação à hegemonia militar dos EUA. A França teria recuperado seu lugar de ''laboratório de experiências políticas'', seu ''não'' terá também representado um ''sim'' e a Europa poderia rediscutir o mundo no novo século, com repercussões diretas para a América Latina, no momento em que avançamos na integração regional, ainda em meio a modelos econômicos centrados no mercado.