Título: Entrevista: Claudio Lemos Fonteles ¿A Justiça está formal e burocrática ¿
Autor: Daniel Pereira e Tina Vieira
Fonte: Jornal do Brasil, 29/05/2005, País, p. A3

BRASÍLIA - O carioca Claudio Lemos Fonteles deixará o cargo de procurador-geral da República, no dia 30 de junho, convicto de que o governo atual representa um divisor de águas no combate à corrupção no país. Pela primeira vez na história, diz Fonteles, órgãos de investigação do Poder Executivo estão atuando em parceria com o Ministério Público para desbaratar quadrilhas que lesam o erário e punir seus integrantes, inclusive os de colarinho branco. ¿ O que acho extremamente positivo é que, neste governo, a corrupção está à mostra. O governo não fez nada para obscurecer a corrupção na medida em que permitiu diálogo com o Ministério Público ¿ afirma Fonteles.

O elogio é acompanhado de ressalvas. Fonteles diz que autoridades públicas de primeiro escalão deveriam ser afastadas do cargo, de forma preventiva, quando denunciadas pelo Ministério Público, a não ser que comprovassem, de pronto, a impertinência das acusações. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva já deu mostras de que discorda e mantém na ativa o ministro da Previdência, Romero Jucá, e o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles.

¿ Não foi conduzido da maneira que deveria ter sido conduzido. Mas é uma visão política, cada um tem a sua ¿ afirma Fonteles, sem citar os casos específicos de Jucá e Meirelles.

Na entrevista concedida ao JB, Fonteles sugere caminhos para aperfeiçoar o combate à corrupção no país, como o financiamento público de campanhas e a reformulação do Código Penal, a fim de tornar mais ágil a Justiça brasileira, considerada um ¿gargalo¿. Também defende a CPI dos Correios.

¿ A beleza do regime democrático é que não há cidadão acima de qualquer suspeita. Tem de ser investigado e com muita tranqüilidade dizer o que se passa ¿ declara Fonteles.

- O Brasil é hoje um país mais corrupto?

- Não. Diria que de uns dois anos pra cá a corrupção está à mostra. É como se você tivesse, durante anos, um pus enorme dentro de um corpo. Isso começa com a ditadura brasileira. Não é que não havia antes. Mas a ditadura brasileira significa o alastrar da corrupção, porque o ditador impera diante do silêncio e pune, mata, prende, tortura aquele que queira contestar. Esse silêncio gera toda uma forma de corrupção como um câncer que vai tomando conta do corpo. Isso foi se juntando durante todos esses anos. O que há hoje, de 2003 pra cá, é como se começamos a fazer uma incisão, e o pus represado de muito tempo está saindo.

É realmente uma coisa extremamente positiva que foi feita neste governo. Estou tranqüilo (para elogiar) porque estou indo embora. Pela primeira vez, as instâncias de investigação do governo - Polícia Federal, Banco Central, Receita Federal, Previdência Social, órgãos de fiscalização da área ambiental - começaram a dialogar com o Ministério Público Federal, que não é governo, é uma instituição da sociedade. As instâncias de investigação do governo passaram a contribuir com o Ministério Público. Antes, havia até um mal-estar, confronto, corporativismo exacerbado. É o quadro de outrora.

- E o governo?

- Há corrupção, sem dúvida, como há em todo governo. Mas quantificar é muito complicado. O que acho extremamente positivo é que, neste governo, a corrupção está à mostra. O governo não fez nada para obscurecer a corrupção na medida em que permitiu diálogo com o Ministério Público. As instâncias governamentais dos tempos passados, antes do governo Lula, não dialogavam com o Ministério Público. Uma área fundamental é a Controladoria-Geral da União. Eles fazem os levantamentos mensais e encaminham para nós. Vários prefeitos foram acusados e alguns afastados. Isso é positivo. Outrora não existia a Controladoria-Geral da União. Era uma corregedoria interna. Aquilo nunca mostrou nada. Essa virada também foi muito importante.

- Não é necessário que as punições sejam mais constantes?

- Aí é o gargalo da Justiça. A Justiça brasileira ainda não é ágil, está muito formal, abstrata, burocrata. Está na hora de mexer seriamente na Resolução Processual Penal para concentrar as audiências, eliminar o excesso de recursos, senão você não acaba uma questão nunca.

- É preciso aumentar as punições ao colarinho branco?

- Hoje denunciamos muita gente do colarinho branco. Alguns estão no cárcere. Isso era impensável até pouco tempo atrás. Muitas denúncias foram feitas. No caso Jader Barbalho, fiz duas denúncias que foram recebidas pelo Supremo Tribunal Federal.

- O senhor elogiou o governo em alguns aspectos. Mas, em certos momentos, ele ressuscitou a discussão de abafar o Ministério Público...

- Em nenhum momento recebi sequer um telefonema de Luiz Inácio Lula da Silva e de Márcio Thomas Bastos para qualquer coisa. Pelo contrário, fui ao presidente e disse: ''olha presidente, uma democracia cresce muito quando o Executivo tem pouquíssima ou rara ingerência sobre uma instituição, e ela, portanto, é independente e mostra para o Executivo equívocos que estão sendo perpetrados''. Se o Poder Executivo entende que não são equívocos, debatemos isso no Judiciário. Se entende que é, fazemos acordo extrajudicial. Aconteceram divergências, mas no Judiciário. É a democracia.

- As restrições ao trabalho do Ministério Público ainda são muito fortes...

- O Ministério Público mudou. Saiu do momento que chamei de voluntarismo pelo voluntarismo. Realmente equívocos foram cometidos, temos que reconhecer. Hoje já é uma situação que chamo de maturidade institucional. Terminamos um ciclo e começamos o outro, que não está acabado. Estamos começando a falar em termos institucionais.

- O Brasil precisa passar por uma reforma política para conter um pouco da corrupção?

- Precisa sim. A primeira coisa é exigir dos partidos que selecionem os seus candidatos a cargos. É imperativo que partido político crie uma comissão de ética, obviamente ligada à direção nacional. A comissão haveria de avaliar nome por nome quem quer se filiar ao partido. Deveria haver também uma fiscalização pelos tribunais eleitorais de toda a movimentação financeira dos candidatos. São duas coisas vitais, a seleção dos candidatos e o financiamento público de campanha com abertura de uma conta específica para o candidato. A conta seria aberta no período pré-eleitoral e encerrada depois da eleição.

- O governo de coalizão e a distribuição de cargos não favorecem a corrupção?

- Coalizão é algo complicado. Sem dúvida, uma coisa que estamos muito carentes no Brasil em todos os setores, mas na política isso bate muito forte. A minha geração foi criada para ir à rua lutar contra o sistema ditatorial, porque tínhamos o ideal de construir uma sociedade realmente humana. Essa geração foi impelida pela palavra ideal, que sumiu, virou a coisa do mercantilismo. Isso é que a gente tem de resgatar.

- Nesse ponto, o senhor está decepcionado com o governo atual?

- No ponto de fazer coligação e não exercer um juízo de fiscalização e de diálogo firme com quem se ajustou decepcionado. Se um procurador-geral faz uma acusação contra alguém de um partido coligado, chamaria os representantes desse partido e diria: de duas, uma - ou vocês demonstram imediatamente na Justiça que o que esse procurador-geral fez não se sustenta, ou a pessoa que está coligada deve se afastar por um momento até que se defina o quadro. Ou demonstra logo que não há base jurídica ou vamos, cautelarmente, afastá-lo. Se ficar provado que não houve nada, que o procurador falhou, a pessoa volta. Se não, ela responde pelos seus atos. Mas é uma visão política, cada um tem a sua. Não foi conduzido da maneira que deveria ter sido.

- E o cidadão Claudio Fonteles, que foi para as ruas na década de 60...

- Não fico frustrado, porque sei que as pessoas querem respostas muito rápidas e imediatas. Aprendi uma coisa neste cargo, uma nova visão de amadurecimento, porque não tinha isso. As pessoas têm ânsias de querer melhorar, depois muita frustração, sensação de impunidade, de corrupção. E o país ficou tanto tempo sem responder... Então, veio alguém e você quer que ele responda em 24 horas. Não é assim. Algumas coisas têm sido feitas. Há falhas? Há. Acabei de pontuar uma. Mas alguma coisa neste país tem sido feita. Essa junção (entre órgãos do governo e Ministério Público) é muito importante, nunca foi feita. Outro trabalho que fizemos, não tem nada a ver com o governo, foi a criação de uma assessoria internacional no gabinete do procurador-geral. Olhe o que temos conseguido com acordos internacionais. O Ministério Público Federal agora está trabalhando também com o exterior para o combate à macrocriminalidade.

- Se o senhor fosse parlamentar, assinaria a CPI dos Correios?

- (Risos)... Mas eu não sou parlamentar!

- Como cidadão, o senhor defende a CPI dos Correios?

- A beleza do regime democrático é que não há cidadão acima de qualquer suspeita. Brinco com as pessoas e já falei isso em público: antes de ser procurador-geral, a minha ficha era absolutamente limpa. Depois que virei procurador-geral, sou autoridade co-autora em vários mandados de segurança. Respondi a dois processos no Senado da República. Você está sujeito a tudo isso. Acho que tem de ser investigado e com muita tranqüilidade dizer o que se passa. Tanto que, na visão jurídica, fui favorável à criação da CPI do caso Waldomiro Diniz. É válido a CPI. Vamos para o debate. Não temeria não.

- Como deve ser o perfil do seu sucessor?

- Cada um é cada um, essa é a beleza dos seres humanos. Aqui trabalhamos em equipe fortemente, e o ideal seria manter essa visão institucional e desenvolver esse ciclo de início de maturidade. Viajei todo este país. Está faltando só Alagoas. Viajei do Amazonas ao Rio Grande do Sul, mais de uma vez, dialogando com procuradores e servidores para criar essa grande estrutura de interação de equipe.

- Dois anos não é pouco tempo?

- Para mim, não é. Imprimi um ritmo muito forte. Quando entrei aqui, em 2003, entrei com toda vibração. Falei para a minha equipe: ''a gente pára de correr no dia 30''. Agora, estou olhando a faixa de chegada. O corpo está doendo. Se eu vou para mais dois anos, com o corpo dolorido, não vai ser legal. Não vou com a mesma gana, a mesma raça. Aí, é outro que tem que ir com esse mesmo ideal, com trabalho de equipe, defendendo a sociedade. Na minha geração, dizia-se que o que é bom para o estado é bom para a sociedade. Hoje não há mais essa máxima. A sociedade não aceita. Isso é bonito, a verdadeira democracia, esse embate equilibrado, sereno e firme entre os mecanismos sociais e a administração.

- O senhor vai sugerir o seu sucessor ao presidente Lula?

- Me reuni com ele semana passada e já fiz minha avaliação, mas não vou dizer quem é.