Título: ''É preciso prevenir a corrupção''
Autor: Luiz Orlando Carneiro
Fonte: Jornal do Brasil, 06/06/2005, País, p. A3

O advogado João Geraldo Piquet Carneiro presidiu a Comissão de Ética Pública da Presidência da República, desde sua criação, em 1999, até junho do ano passado. Embora admita que o Brasil é mesmo um dos países mais corruptos do mundo em termos ¿endêmicos¿, chama a atenção para o fato paradoxal: quanto mais casos de corrupção aparecem maior é a ¿percepção social¿ negativa, apesar ¿dos notáveis progressos¿ constatados na repressão promovida pelo Estado, sobretudo com as operações da Polícia Federal. Para ele, no entanto, é ¿essencial que se adote uma política de prevenção da corrupção que sinalize para o povo um genuíno desejo de mudança¿. E lembra que a comissão que presidiu tem pronto um modelo destinado a aferir o ¿poder de compra¿ e o ¿poder de regulação¿ dos órgãos públicos. Ou seja, tem meios de identificar aqueles mais ¿suscetíveis à corrupção¿, por combinarem ¿grande capacidade econômica e alto poder de regulação¿. Os dirigentes indicados para essas instituições ¿ e dá como exemplo os Correios (ECT) e a Caixa Econômica ¿ deveriam ser sabatinados pelo Senado, depois de audiência prévia da Comissão de Ética Pública. Dessas sabatinas e audiências não deveriam escapar nem os futuros ministros de Estado, seus candidatos às secretarias-executivas, e os diretores de todas as autarquias e agências reguladoras.

A corrupção no Brasil é mesmo, a seu ver, ¿a maior do mundo¿? ¿ De fato, as pesquisas recentes indicam que achamos a nossa corrupção uma das maiores do mundo. Esse juízo negativo se forma, no plano individual, a partir de experiências vivenciadas de ¿pequenas¿ corrupções, como os indefectíveis achaques por guardas de trânsito. Ou, de modo mais amplo, pelo aumento da percepção da corrupção na esteira de freqüentes escândalos e de ações policiais de ampla visibilidade. Quando a sociedade acredita que a corrupção é generalizada, a questão transborda para o campo político, e não adianta tentar convencer as pessoas de que estão enganadas. É preciso demonstrar que o governo ¿ Executivo, Legislativo e Judiciário ¿ está decididamente empenhado em combatê-la.

Mas o Brasil não está, efetivamente, no topo do ranking mundial da corrupção? ¿ De acordo com a Transparência Internacional, o Brasil está entre os países com maior incidência de corrupção no setor público. Mas é preciso ter cuidado com esse tipo de avaliação, que é feita com base naquela ¿percepção¿ de corrupção. Paradoxalmente, quanto mais aparecem casos de corrupção ¿ embora fruto da ação eficaz da polícia ¿ maior é a percepção social negativa. Como é impossível aferir corrupção ainda não detectada, fica valendo a estatística da percepção.

Mas no resto do mundo não se tem a ¿percepção¿ de que o fenômeno seja tão alarmante... ¿ O fenômeno ocorre hoje em escala mundial. Desde o colapso da União Soviética e dos regimes satélites do Leste europeu, confirmou-se o que já se suspeitava em matéria de corrupção nos regimes comunistas. Nada muito diferente do que aconteceu e ainda acontece em ditaduras africanas e latino-americanas. Sociedades mais homogêneas, como a japonesa e a coreana, também não escapam da corrupção. Na Europa Ocidental, Alemanha, França, Itália, Espanha e até a alta direção da Comunidade Européia foram protagonistas, nos últimos anos, de casos rumorosos de corrupção.

As principais causas da corrupção não seriam de natureza histórico-cultural? ¿ Em geral, esse tipo de diagnóstico vem acompanhado de uma conclusão sinistra de que a corrupção não tem remédio. É claro que a corrupção existe desde que surgiram o comércio, a moeda, a tributação e as burocracias ¿ governamentais ou teocráticas. O Código de Hamurabi já tratava do assunto. Lembre-se que até dez anos atrás alguns países europeus consideravam as propinas pagas a governos do chamado Terceiro Mundo como despesas dedutíveis para fins de apuração do lucro tributável das empresas. Havia até recentemente um certo grau de conformismo fatalista com a corrupção. Mas agora temos medo dela pelo seu enorme poder destruidor político, social e econômico, na medida em que a corrupção passou a ser uma das armas do crime organizado e do terrorismo. Além disso, ela se beneficia do livre fluxo de capitais entre países e do aumento dos recursos administrados pelo Estado, provenientes das privatizações e concessões de serviços. O problema não está, é claro, no diagnóstico, já que todos concordam, de um modo geral, a respeito das principais causas da corrupção. Mas o que incomoda mesmo, desafia e preocupa é a dificuldade de combatê-la, especialmente nos países em desenvolvimento, que são politicamente mais vulneráveis.

Mas qual seria a principal diferença entre as conseqüências da corrupção em países do ¿Primeiro Mundo¿ e em países como o Brasil e seus vizinhos, por exemplo? ¿ Nas democracias estáveis, a corrupção afeta os governos e seus protagonistas, mas não compromete as instituições políticas. Os escândalos recentes nos Estados Unidos, a partir do caso Enron, provocaram perdas monumentais para os poupadores privados. Mas não passou pela cabeça de ninguém abolir a democracia republicana lá implantada há mais de 200 anos. Nos anos 90, no Reino Unido, houve o escândalo cash for questions (dinheiro para perguntas). Aquele em que membros do Parlamento cobravam para defender interesses privados em seus discursos. O episódio gerou um enorme desgaste político, e 60% dos britânicos passaram a considerar os parlamentares desonestos. Mas a monarquia e o parlamentarismo não foram comprometidos. Na Itália de Berlusconi não se fala de restabelecer o fascismo ou implantar o comunismo par acabar com a corrupção. Agora, no Brasil, onde a democracia é uma conquista recente, a corrupção passou a ter uma dimensão não só política, mas também institucional. Em que medida ¿ e em que prazo de tempo ¿ a percepção de que a corrupção é generalizada não levará ao descrédito da democracia? Em outros países latino-americanos politicamente menos estáveis que o Brasil o risco é ainda maior.

Em geral, a corrupção é mais pública ou mais privada? ¿ É claro que há sempre duas partes: a que paga e a que recebe. Mas não necessariamente a parte que paga é um particular e a que recebe é um funcionário público. Na área política, com freqüência, as duas partes pertencem ao governo. Por exemplo, a manipulação de recursos públicos para fins eleitorais. Na esfera privada, o pagamento de comissões entre agentes econômicos não causa necessariamente prejuízo direto ao erário. Na prática, a corrupção pública estimula a privada, e vice-versa. Mas é certo que, acima de um determinado nível, a corrupção torna-se disfuncional para o governo, para a ordem econômica e, principalmente, para a ordem política.

Essa onda de escândalos e denúncias pode ter o efeito positivo de melhorar o padrão da conduta ética no Brasil? ¿ Eu diria que há duas maneiras conhecidas e complementares de se combater a corrupção: a repressiva e a preventiva. A ação repressiva se afirma pelo aperfeiçoamento dos meios policiais e judiciais de detecção e punição. Apesar dos notáveis progressos na ação da Polícia Federal, a sociedade cobra mais rapidez na punição dos culpados. O clamor público traz um grande desafio para o Judiciário, que tem de ser ágil, sem comprometer o direito de defesa e a isenção de julgamento. No entanto, só a ação repressiva não resolve. É essencial que se adote uma política de prevenção da corrupção que sinalize para o povo um genuíno desejo de mudança. Sei que isso é uma tarefa complexa, pois implica mudanças culturais e de práticas administrativas e políticas arraigadas que vão exigir o empenho de governos sucessivos. E também uma visão supra-partidária. De início, não se pode esperar alta visibilidade de uma política de prevenção. Mas essa política servirá para reduzir o estresse permanente típico das ações apenas repressivas.

E o que é preciso fazer para se adotar essa política de prevenção da corrupção? ¿ Qualquer política desse tipo pressupõe um mínimo de consenso sobre alguns pontos básicos. Destaco os seguintes: combater o autoritarismo burocrático, ou seja, tornar efetivo o princípio de que ¿serviço público¿ significa, antes de tudo, ¿servir ao público¿; atacar não só a ¿grande corrupção¿, mas também a ¿pequena¿, que cria o caldo de cultura para as transgressões maiores; combater o excesso de burocracia, que é a mãe de todas as corrupções; institucionalizar o treinamento sistemático do funcionalismo de carreira em temas de ética pública; descentralizar a gestão da política de prevenção da corrupção, e levar essa mensagem aos estados e municípios.

Dê alguns exemplos concretos de medidas que deveriam ser tomadas nessa política preventiva. ¿ Um aspecto que considero importante é o da sabatina prévia pelo Senado para ministros e secretários de Estado, secretários-executivos, dirigentes de autarquias e órgãos reguladores, como já se faz para a nomeação do presidente e dos diretores do Banco Central. Também seria importante a audiência prévia da Comissão de Ética Pública sobre os indicados para esses e outros altos cargos da Administração Federal. Não adianta ¿ como se tem falado por aí ¿ reduzir drasticamente cargos de confiança, o que impedirá que o governo recrute técnicos altamente qualificados oriundos do setor privado. O que é realmente importante é o processo de filtragem.

A prevenção da corrupção é compatível com as práticas políticas atuais de loteamento de cargos públicos? ¿ Em qualquer regime, só há governabilidade plena quando o presidente ou o primeiro-ministro tem apoio parlamentar. Como se sabe, nosso sistema político é complexo, imperfeito e fracionado em torno de interesses locais, regionais e corporativos. A formação de uma base parlamentar implica no atendimento de pleitos dos partidos que compõem a aliança. Nos Estados Unidos, milhares de funcionários são substituídos quando muda o presidente. O problema está na abrangência dessas negociações e na dificuldade de se alcançar alianças estáveis. Desde Tancredo Neves ficou combinado que os cargos-chave da área econômica ficariam fora da partilha política. Talvez esteja na hora de se pactuar novas exclusões. Em especial órgãos mais suscetíveis à corrupção.

Por exemplo... ¿ A Comissão de Ética Pública desenvolveu um modelo de aferição, no qual se leva em conta o ¿poder de compra¿ e o ¿poder de regulação¿ de cada órgão. As instituições mais suscetíveis à corrupção são as que combinam grande capacidade econômica e alto poder de regulação de mercados. Por exemplo, os Correios ¿ empresa pública que está agora na mira da opinião pública ¿ deveriam ser excluídos das negociações políticas, assim como a Caixa Econômica. Isso seria um bom início para a política de prevenção da corrupção.

O combate ao nepotismo faz parte de uma política preventiva? ¿ Certamente. Mas discordo do tratamento legislativo e até constitucional que se quer dar ao tema. O nepotismo é um problema tipicamente gerencial. Proibi-lo de um modo geral vai apenas incentivar formas dissimuladas de nepotismo. Tão ou mais pernicioso é o compadrio, a troca de favores promovida por vínculos afetivos. Também não vejo como neutralizar o compadrio via lei ou decreto. A matéria já está amplamente regulamentada no Código Penal, no estatuto do Funcionário Público e na Lei de Improbidade.