Título: A cartilha da violência
Autor: Gustavo de Almeida e Waleska Borges
Fonte: Jornal do Brasil, 06/06/2005, Rio, p. A13

Depois de flagrar o momento em que uma aluna colava na prova, a professora de um Ciep próximo de uma favela, em Nova Iguaçu, aplicou-lhe uma correção: a nota zero. Sem qualquer cerimônia, a aluna tentou reverter a nota fazendo uma ameça à professora. A adolescente, que teria envolvimento com traficantes, deu o recado em voz alta ''Isso não vai ficar assim''. As ameaças contra professores foram registradas pela pesquisadora Miriam Abramovay, da Universidade Católica de Brasília, coordenadora da pesquisa ''Cotidiano das escolas: entre violências'', que está sendo realizada pela Unesco.

- As intimidações são por motivos corriqueiros, entre eles, quando os alunos discordam de notas ou da entrega de trabalhos - comenta a pesquisadora.

Segundo Miriam, as constatações dos motivos que levam às intimidações foram feitas através da pesquisa da Unesco em 113 escolas de São Paulo, Salvador, Porto Alegre, Belém, Rio de Janeiro (parte qualitativa) e o Distrito Federal. Foram ouvidas 1.400 pessoas, entre elas alunos, professores, diretores e funcionários.

- A escola está perdendo o respeito. O que impera é a violência, por isso, alunos e professores sentem-se desprotegidos - avalia Miriam.

O comportamento violento para evoluir no ano letivo já era de conhecimento de especialistas. A pedagoga Eloisa Guimarães, que publicou tese de doutorado pela PUC e lançou pela UFRJ o livro Escola, Galeras e Narcotráfico, já previa, há dez anos, o quadro atual.

- A situação estava instalada precariamente, e hoje está mais enraizada. O confronto hoje é mais claro, em uma sociedade que banalizou a violência. A verdade é que quando se falava e se fala hoje em violência nas escolas, não se tem noção da gravidade disto. Hoje não se percebe a real importância da educação, que é vista de modo individual e não coletivo - diz Eloisa.

Em sua pesquisa de campo, a pedagoga anotou fatos que comprovam o dia-a-dia difícil de professores e diretores em escolas mais afastadas do Centro e da Zona Sul. Em 1989, nas escolas noturnas de 1º grau, já se percebia a falência do papel de ascensor social da Educação nas declarações dos alunos.

- Os alunos diziam que queriam ser garis, e complementavam dizendo que até para ser gari tinha que ter o primeiro grau. Se antes havia a inclusão social por meio da ascensão, hoje a escola promove apenas a não-exclusão para estes alunos - lembra Eloisa

Na mesma pesquisa, em 1989, a pedagoga descobriu que notas de avaliação eram mudadas por pressão das armas. Em artigo publicado em 1995, Eloisa relatou:

(...) exigências de modificação de resultado de avaliação feitas à base de armas de fogo, ameaças de morte, punição física ou danificação de bens, como carros (...).

Sete anos depois, Eloisa passou 12 meses em uma escola da Zona Oeste, cujo nome não pode revelar.

- Nesta escola, foi possível ver o quanto os profissionais de educação têm que se adaptar às regras do tráfico. Uma diretora teve que mudar turmas para poder encaixar o filho de um dos donos do morro - conta.

Marcelo Freixo, pesquisador da ONG Justiça Global, lembra que muitos destes adolescentes não têm envolvimento com o tráfico de drogas.

- O poder do tráfico com a comunidade é intenso. Traficantes determinam o uso de cores de roupas e também interferem na escolha da escola - comenta Freixo.

O pesquisador alerta que alguns jovens são seduzidos pelo tráfico:

- O imaginário deste poder também atinge setores da classe média. Há pichações de facções criminosas até nas portas dos banheiros de cursos pré-vestibular - observa.

O sociólogo Ignacio Cano, pesquisador da Uerj, acredita que os jovens sentem-se tentados a reproduzir o comportamento que vivem nas comunidades.

- É a pedagogia da violência. Estes jovens vêem pessoas matando entre si, cadáveres na rua e pessoas usando a violência para resolver conflitos - analisa Cano.

O delegado Ricardo Teixeira, titular da 6ª DP (Cidade Nova), diz que tem informações de intimidações a professores, mas as denúncias não são confirmadas.

- Os crimes de ameaça e constrangimento ilegal são de pequena potencialidade e a pena prevista é inferior a dois anos. Neste caso, o autor acaba impune e a sociedade com medo de denunciar. A lei precisa ser mudada - sugere o delegado.