Título: Atraso e injustiça
Autor: Luiz Rogério Magalhães
Fonte: Jornal do Brasil, 05/06/2005, Outras Opiniões, p. A11

A reforma tributária, em tramitação no Congresso, representa uma oportunidade ímpar para o Brasil corrigir um dos maiores entraves do seu desenvolvimento sócio-econômico: o centralismo tributário. Hoje, a União detém nada menos do que 61% de todos os impostos arrecadados no país. Os estados ficam com 24,3% e os municípios, com os 14,7% restantes. Esse modelo perverso fere o pacto federativo e ainda propicia a promiscuidade política, vez que torna estados e municípios dependentes de repasses federais.

As raízes para o centralismo tributário brasileiro estão fincadas nos tempos de Império, quando todos os impostos gerados no comércio exterior se avolumavam nos cofres da União. A Constituição de 1824 delegava à Câmara dos Deputados a função de legislar sobre matéria tributária, privando as províncias dessa responsabilidade. O advento da Constituição Republicana de 1891, inspirada no federalismo norte-americano, permitiu que os estados brasileiros respirassem por algum tempo a autonomia tributária. Mas o Estado Novo, de Getúlio Vargas, e o regime militar trataram de concentrar na União a arrecadação e a gestão de tributos.

A Constituição de 1988 voltou a preconizar a autonomia dos estados e municípios, dando origem a uma partilha aparentemente justa. A União ficava com os impostos sobre importação, exportação, renda (IR), produtos industrializados (IPI), propriedade rural (ITR) e operações financeiras (IOF). Aos estados couberam os impostos sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS), propriedade de veículos automotores (IPVA) e transmissão de heranças ou doações (ITCD). Os municípios, por sua vez, foram contemplados com a tributação sobre propriedade urbana (IPTU), serviços (ISS) e transmissão de bens imóveis (ITBI).

Em 1991, como resultado dessa divisão, o bolo tributário reservava 52,5% dos impostos à União, 30% aos estados e 17,5% aos municípios. Não satisfeito, o governo federal passou a lançar mão das contribuições não compartilhadas para aumentar sua arrecadação. Para se ter uma idéia, somente a Cofins, a CSLL e a CPMF recolheram mais de R$ 100 bilhões, em 2002, respondendo por 43% das receitas tributárias do governo federal naquele ano.

Na contramão da voracidade com que avança sobre as contribuições, o governo federal não demonstra o mesmo empenho na arrecadação dos impostos que compõem o Fundo de Participação de Estados e Municípios, verdadeira tábua de salvação de um sem número de prefeituras. Aliás, essa dependência dos repasses da União compromete a castidade do federalismo e dá margem ao indesejável clientelismo.

A reforma tributária enseja a possibilidade de mudança no modelo tributário vigente e a conseqüente correção de distorções e injustiças. A idéia de se criar um tributo único sobre o consumo, o Imposto de Valor Agregado (IVA), regido por uma única lei federal é positiva, desde que sua arrecadação seja automaticamente compartilhada pelos entes federativos. O consumidor precisa saber exatamente o quanto de imposto está pagando sobre o produto que ele compra. Os impostos embutidos em cascata camuflam a altíssima carga tributária do país, que chega a inacreditáveis 38% do PIB nacional. O momento é propício também para desonerar a cadeia produtiva. A tributação excessiva sobreleva o preço dos produtos brasileiros, tornando-os menos competitivos no exterior e inibindo o consumo interno.

Quando se fala em reforma tributária, é imperioso pensar em uma estrutura em que as atribuições e competências de cada esfera de poder estejam bem definidas. O modelo descentralizado deve estimular a cooperação entre os entes federativos e não criar abismos que acabam jogando prefeitos e governadores contra a União. E o mais importante dessa discussão é uma ruptura radical na filosofia da arrecadação. Os impostos recolhidos não podem ter como objetivo precípuo a consecução do superávit primário para pagamento dos juros da dívida. Os tributos, por definição, devem ser revertidos em investimentos para reduzir as injustiças e corrigir as desigualdades sociais.