Título: Canal da Paz, a diplomacia da água
Autor: Marcelo Ambrosio
Fonte: Jornal do Brasil, 05/06/2005, Internacional, p. A14

Por incrível que pareça, há algo tão urgente no Oriente Médio quanto encerrar o conflito entre Israel e os palestinos: salvar o Mar Morto. O lago, que fica 390 metros abaixo do nível do mar, na Cisjordânia, encolhe 80 cm por ano em função de drenagens e da evaporação e, prevêem pesquisadores, perderá 20 metros de lâmina nas próximas décadas. O impacto social e econômico é enorme, já que muito da agricultura irrigada em Israel, na Jordânia e nos territórios palestinos vem dele. Correndo contra o relógio, Jerusalém e Amã deram a partida no estudo de viabilidade para a construção de um ambicioso sistema que deverá fazer a transposição das águas do Mar Vermelho para o Mar Morto.

Veja o Infográfico O desafio de engenharia caminha junto com a perspectiva de que o plano não interligue apenas linhas de água, mas que funcione como mais um elemento de diplomacia alternativa. Pode estabelecer um equilíbrio entre ecologia e desenvolvimento sustentável e distribuir seus ganhos entre as populações envolvidas. Segundo o geólogo Michael Beyth, cientista-chefe do ministério de Infra-estrutura israelense e responsável pelo projeto, o Canal da Paz, como é chamado, corrigiria o impacto do crescimento populacional em Israel e nos territórios palestinos, das secas freqüentes e da aplicação de ambiciosos programas de desenvolvimento. Tudo a partir de uma solução negociada e com o aval de organismos internacionais.

A iniciativa, que já conta com US$ 30 milhões do Banco Mundial para os estudos de viabilidade, prevê uma interligação de 80 km de extensão. Ao longo do trajeto, a água própria para consumo seria distribuída para israelenses (em Jerusalém) e palestinos (de Hebron, região onde o abastecimento é difícil).

A idéia do canal não é nova. Foi proposta inicialmente pelo britânico William Allen em 1855 e surgiu quase à mesma época em que foi descoberto o desnível entre o Mediterrâneo e o Mar Morto. Segundo Beyth, o plano de Allen era mais barato do que a construção do Canal de Suez. Hoje, as cifras são astronômicas, mas perfeitamente justificáveis diante das necessidade e da rapidez com que o problema se agrava.

- Calculamos que o custo do projeto como um todo possa chegar a US$ 7 bilhões - avalia o geólogo ao JB, de Jerusalém, pouco depois de chegar de três dias de trabalho de campo. - Com a constante redução do nível do Mar Morto, o canal será importante para compensar o que se perde na evaporação. Também ajudará a manter as áreas turísticas tradicionais - completa.

Na fase atual, os pesquisadores estão definindo o trajeto escolhido, denominado Alinhamento de Arawa. Havia outros dois planos de abastecimento em discussão, o Alinhamento Qatif, que vinha do Mediterrâneo ao Mar Morto e o Alinhamento Norte, que unia também o Mediterrâneo ao Mar da Galiléia, acima do lago. A opção pela transposição do Mar Vermelho é a mais cara, mas foi selecionada por ser o modelo que mais se adequava aos interesses jordanianos, os principais parceiros na empreitada. Afinal, a exploração de potássio do lago por empresas árabes, tanto quanto a drenagem desordenada, tem responsabilidade na aceleração da taxa anual de evaporação.

Segundo o cientista-chefe, que cedeu algumas plantas e trabalhos técnicos sobre o assunto para esta reportagem, o Canal da Paz - que apesar do nome tem parte do trajeto em túneis e parte em tubulações - seria formado por uma combinação de estações de bombeamento (pelo menos três projetadas), uma estação de tratamento e uma usina de dessalinização. Entre as duas últimas se aproveitaria também um desnível de quase 500 metros. A unidade de dessalinização está situada a -360m aproximadamente. A linha se bifurca após a última fase, quando parte da carga vai para o lago e parte - um terço do total - segue para a Autoridade Nacional Palestina (ANP) em Hebron e para Jerusalém.

- O estudo de viabilidade deve levar uns 18 meses. Depois serão necessários mais seis para a escolha das empreiteiras. A obra em si deve durar mais ou menos dez anos - calcula Beyth, acreditando que o projeto, mesmo sem ter saído ainda do papel, já está cumprindo uma importante missão nas sociedades onde é discutido. - A discussão ecológica envolvendo o uso da água se tornou algo muito profundo, especialmente em Israel. Obter paz é um dos principais motes usados nesse caso, ainda que seja um plano bastante caro - acrescenta.

Uma das fases importantes do estudo de viabilidade deverá ser a de confirmação sobre os impactos ambientais que um projeto desse calibre pode provocar. Nas previsões do geólogo, há algumas conseqüências com as quais os técnicos precisam lidar e ainda não possuem ainda as respostas adequadas. A principal delas diz respeito à mistura de dois tipos de água completamente diferentes em sua composição mineral e salinidade, entre outras características.

Num cenário extremo, Beyth prevê que a mistura provoque uma diluição da água do Mar Morto, levando a alterações na camada superior da lâmina d'água, principalmente em seu ambiente biológico. Os reflexos imediatos incluiriam ainda a precipitação de gipsita (gesso) para o fundo, prejudicando a indústria de mineração. Mas, ainda assim, poderiam ser transtornos menores do que o vertiginoso rebaixamento do lençol freático (água subterrânea) e o surgimento de sumidouros resultantes dessa movimentação. Tanto um quanto outro interferem diretamente em outra vocação que sustenta muito da economia turística em torno do lago.