Título: Além do Fato: O balcão de negócios da saúde pública
Autor: Mariana Filgueiras
Fonte: Jornal do Brasil, 04/06/2005, Cidade, p. A13

A nova crise da saúde pública do Rio de Janeiro tem nome e sobrenome, ou seja, atende pelo nome de cooperativas e de contratação irregular de prestadores. Filhos legítimos da incompetência de um governo estadual trapalhão. Não existe forma mais execrável de se burlar a legalidade de ingresso no serviço público do que a que estamos presenciando. Ainda mais em se tratando de servidores que têm como missão salvar vidas humanas. Parece que voltamos aos anos onde para ser funcionário público bastava um simples apadrinhamento de um parlamentar para que trens da alegria fossem formados. O Brasil evolui e os concursos públicos, quando realizados de forma idônea, além de moralizar a vergonhosa face do fisiologismo barato e eleitoreiro, melhoram a qualidade dos serviços prestados à população. Não se pode admitir que nos dias de hoje, em pleno Estado do Rio, os profissionais de saúde e a população sejam usados como balcão de negócios, por meio de contratos irregulares e de cooperativas sombrias, com conseqüente desserviço para a saúde pública.

Visitei, em 31 de maio, na qualidade de vereador desta cidade, o Hospital Estadual Rocha Faria, onde a totalidade dos clínicos gerais da emergência não compareceram ao plantão, alegando falta de pagamento dos meses trabalhados, como forma de punição pela não adesão à maneira vergonhosa que o governo do estado encontrou para sanar as irregularidades da contratação de prestadores de serviço, o ingresso nas também ilegais cooperativas. Esses governantes deveriam ser atendidos, quando com alguma enfermidade, em um desses próprios hospitais que administram, para que pudessem sentir na carne o que a população excluída sofre. Entretanto, ao contrário, quando precisam de uma internação ou de um simples cateterismo do coração procuram clínicas particulares.

Presenciei no Hospital Estadual Rocha Faria o que nunca havia visto antes em toda minha vida de médico e servidor público, mesmo quando chefiei a emergência do Hospital Municipal Miguel Couto, antes de minha eleição para vereador. Encontrei 60 pacientes internados no setor de clínica médica. Na sala de reanimação, um funcionário antigo do próprio hospital, com infarto do miocárdio, aguardava atendimento há horas. Uma senhora desencadeou um episódio de crise convulsiva, muito provavelmente devido ao estresse psicológico. Sua filha agarrou em minha mão e me perguntou: ¿o senhor é médico? Não deixe minha mãe morrer, pelo amor de Deus¿. Meu primeiro juramento foi com a medicina. Meu segundo, foi com a missão de parlamentar. Hiprócates falou mais alto e passei então da condição de vereador para a de médico tendo que realizar não só este atendimento como outros mais, juntamente com o diretor da unidade e outros profissionais de outras especialidades. Ambulâncias do Corpo de Bombeiros com pacientes graves chegavam a todo instante. Carros de passeio traziam pacientes desfalecidos. O pior é que estes fatos acontecem através de um governo que é, atualmente, o responsável pela gestão plena do SUS.

O mesmo governo que mantém hospitais como o Iaserj, Carlos Chagas, Getúlio Vargas, Pedro II, Albert Schweitzer, Rocha Faria, Saracuruna, Araruama, São Gonçalo e Itaboraí, entregues a graves problemas de recursos humanos e tecnológicos. Realmente, o governo do estado deu a volta para baixo.