Título: Lições do Medo
Autor: Gustavo de Almeida e Waleska Borges
Fonte: Jornal do Brasil, 05/06/2005, Rio, p. A25

Alunos de escolas do Rio, identificados com siglas do tráfico, aumentam situação de risco dos professores e colocam Educação em perigo Um triste e silencioso muro está sendo erguido pelo tráfico de drogas no Rio de Janeiro, separando cada vez mais alunos de professores. A matéria-prima desta barreira vem da crescente identificação de jovens de comunidades carentes com o modelo mais próximo de sucesso de que dispõem: o traficante. Ao longo de dez dias, o Jornal do Brasil entrevistou, preservando o anonimato, professores e alunos de escolas de várias partes da cidade. Também foram ouvidos sociólogos, antropólogos, parlamentares e autoridades municipais e estaduais. A maioria não nega a existência de uma presença cada vez maior da violência nas escolas. E muitos não se surpreenderam com a constatação de que a rivalidade entre facções criminosas ¿ formadas nos presídios fluminenses desde a década de 70 ¿ está ganhando os pátios e os arredores das escolas, em uma ameaça real àquela que, consensualmente, seria a cura para todos os males sociais: a Educação. A dor atinge e separa professores e alunos. As histórias, quando não contêm também violência, têm todas um denominador comum: o medo. A principal vítima é o futuro.

O relato da professora J., de uma escola municipal em Vila Isabel, mostra que os jovens moradores das favelas já não acreditam no poder de ascensão social da escola. Um exemplo de descrédito na escola, segundo a professora, são as respostas das crianças sobre o futuro:

¿ Antes, os alunos diziam que seriam professores ou médicos. Hoje, as crianças sonham em ser gari, camelô ou policial.

Com a experiência de quem trabalhou em escolas de Brás de Pina (como as municipais Goethe e São Paulo), a professora X. vai mais além:

¿ Hoje, é comum ver redações em que os meninos falam em ter poder no morro ou desenhos em que aparecem armados ¿ diz, com tristeza, a profissional de educação.

O futuro passou a ser objeto de temor para o adolescente T., de 14 anos. Por causa de um boné vermelho ¿ a cor da facção rival ¿ ele foi surrado em frente à Escola Municipal Jenny Gomes, na Avenida Paulo de Frontin, no Rio Comprido. Ele foi identificado como morador da Favela do Turano, na Tijuca, dominada pela facção criminosa Comando Vermelho, e agredido por ex-alunos que moram no Morro do São Carlos, controlado por traficantes da facção conhecida como Amigos dos Amigos (ADA). Um ano depois da surra, na tarde de quinta-feira, T., que cursa a 5ª série, exibia as marcas deixadas nos seus braços. Ele estava numa rodinha de amigos na porta da escola. Sem qualquer constrangimento, o grupo contava entusiasmado a rivalidade entre as facções na escola. Mesmo não sendo infratores, meninas e meninos até defenderam as facções.

¿ Era início do ano passado. Eles (os agressores) estavam a cavalo e gritaram ¿É o bonde do Gangan (traficante Irapuan David Lopes, morto pela polícia em outubro). Quando viram o meu boné, me bateram com pedaços paus ¿ conta T., que precisou ser hospitalizado.

As cores do ódio apareceram no retrato tirado pela pesquisadora da Universidade Católica de Brasília, Miriam Abramovay, na pesquisa ¿Cotidiano das Escolas: Entre Violências¿ que está sendo realizada pela Unesco. Foram ouvidos alunos e professores de 113 escolas de São Paulo, Salvador, Porto Alegre, Belém, Rio de Janeiro (parte qualitativa) e o Distrito Federal.

¿ No Rio, uma professora foi ameaçada com uma arma nas costas porque pediu para o aluno trocar a bermuda vermelha pela azul do uniforme. Uma outra professora sofreu ameaças porque estava vestida de azul ¿ conta a pesquisadora.

O escritor Júlio Ludemir, autor dos livros Sorria, você está na Rocinha e No Coração do Comando, teve a mesma revelação durante a pesquisa de campo que empreendeu para escrever seu mais recente trabalho, Lembrancinha do Adeus. Com assombro, Ludemir confirma a separação de facções criminosas que alunos, em princípio inocentes, levam para pátios e salas de aula.

¿ O livro é sobre um menino do Morro do Adeus cujo grande sonho na vida é ser bandido. Ele é de uma área em que crianças assumem a rivalidade entre os bandidos dos locais em que moram. Enquanto pesquisava para fazer o livro, soube de uma escola pública de Niterói que, para evitar brigas, tinha recreio diferenciado para os alunos de facções rivais ¿ diz Ludemir.

O escritor freqüentou os morros do Complexo de São Carlos, de são os agressores do menino surrado por causa do boné vermelho:

¿ Hoje há forte rivalidade entre a facção Amigos dos Amigos e o Comando Vermelho. Mas antes havia com o Terceiro Comando. E as escolas públicas ao redor do complexo refletiam as constantes guerras ocorridas no morro (ver quadro `Diário de Campo¿ na pág. 26).

A briga entre alunos impede festas em datas comemorativas na Jenny Gomes. No ano passado, segundo mães de alunos, dois estudantes entraram na escola armados durante uma feira de ciências.

Acostumados com a presença de traficantes nos arredores da Escola Estadual Olga Benário, na Rua Uranos, próximo do Morro do Adeus, em Ramos, há dois meses, por volta das 8h, alunos e professores foram surpreendidos por um bando armado dentro das salas de aula. Depois de espancar o inspetor no portão da escola, o grupo de seis jovens ¿ entre eles ex-alunos ¿ invadiu o prédio e iniciou uma série de agressões e pequenos assaltos.

¿ Um dos professores pensou que eram alunos entrando na sala sem pedir licença. Mas, em seguida, ele ficou paralisado ao ver os alunos sendo espancados e assaltados ¿ lembra a professora. Dos alunos foram roubados celulares e mochilas. Dias depois, segundo conta a professora, descobriu-se o verdadeiro motivo da invasão:

¿ Eram traficantes do Alemão que resolveram agir contra os alunos da Vila dos Pinheiros. Os que eram do Alemão tiveram os pertences devolvidos por ordem do chefe do morro ¿ conta a professora, que tem 33 anos de magistério. Após todos estes anos, ela vive dois perigos: pela janela de sua sala no quarto andar, tiroteios na favela. E, pela porta, seus alunos, crianças inocentes que agem como se fossem adultos bandidos.