Título: Além do Fato: Órfãos da ética
Autor: Gláucio Ary Dillon Soares
Fonte: Jornal do Brasil, 08/06/2005, País, p. A7

O povo brasileiro se encontra órfão da ética. Antes do golpe de 64, a UDN era a auto-proclamada guardiã da ética no país. Os militares também se outorgaram essa função, mas alguns anos de ditadura, a invasão do estado, as prebendas que se permitiram, a violência contra seus opositores e o casuísmo legal após cada derrota eleitoral, deixaram a nu que as FFAA não eram nem mais nem menos éticas que outras instituições. O PT vestiu a camisa da ética e da moralidade nos negócios públicos. Foi, por muitos anos, coerente e usou (e até abusou) da associação que se fazia entre o partido e a lisura no trato com a coisa pública. Acusou muitos, de crimes reais e alguns de crimes fictícios. Pouco a pouco, a ética e a lisura adquiriram o caráter de instrumento na guerra política, criando uma altíssima expectativa com relação ao PT no poder. Porém, os partidos na oposição são uma coisa e, no poder, outra. No início do governo FHC, Bolivar Lamounier enfatizou a importância da governabilidade e a necessidade de formar uma coalizão no Legislativo, o governo se dedicou a construir maioria no Legislativo sob pesadas críticas de quem sonhara com um Brasil social-democrata. O PSDB, sem maioria no Legislativo, precisava dessas alianças. O que não se percebeu é que o sistema político brasileiro impede que qualquer partido tenha maioria em uma casa, que dizer nas duas. A soma dos representantes dos dois maiores partidos não atinge a maioria em uma só casa. Recém-eleito, cada partido percebe as dificuldades em exercer o mandato. Muitos continuam falando da necessidade de reforma política para reduzir as irracionalidades do sistema político brasileiro. Fernando Henrique lidou com esses problemas e montou o seu presidencialismo de coalizão, azeitando-o aqui e alí. E só os intelectuais continuaram a falar em reforma política.

Oito anos mais tarde, a história se repetiu. Inicialmente, se falava em reforma política mas, estabelecida uma aliança governista, a reforma política deixou de ser necessidade imediata, algo sem o qual o governo não governa. E caiu no esquecimento. As alianças com partidos de oportunidade, como o PTB, se fazem na base do fisiologismo, cujas práticas corrompem quem recebe e quem paga com dinheiro público ou privado.

Grande parte do povo brasileiro tinha receio de que o PT, no poder, radicalizasse. Nada disso: uma vez no poder, o PT expulsou os radicais do partido. E, agora, apareceram os escândalos.

A população brasileira não tem em quem depositar a sua fé ética. As instituições guardiãs da ética estão desmoralizadas no país. Na região do político escapam poucos: partidos, políticos, Legislativo, assembléias legislativas, governadores, vereadores ou prefeitos. A polícia, em alguns estados, é equiparada aos ladrões. O Judiciário recebe avaliações tão baixas quanto o Legislativo. Já passou o tempo em que ser juiz do Supremo era a ocupação mais desejada. Até o esporte foi invadido pela onda de corrupção.

A vulgarização da corrupção e a desmoralização de tudo o que é politico alimentam as ¿soluções de força¿. Os dados do Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB) o mostram. Os descrentes estão mais dispostos a abandonar o caminho eleitoral. Entre os que ¿concordam muito que há políticos honestos¿, 61% votariam se o voto fosse facultativo; entre os que discordam muito, apenas 37% votariam. É baixo o nível de satisfação com a democracia no Brasil: 5% muito satisfeitos e 26% apenas satisfeitos. O detalhe: essa pesquisa foi feita logo antes da eleição de Lula, em pleno período pré-eleitoral. É um dado preocupante, sendo clara sua relação com o fisiologismo e a corrupção. O governo percebe esses problemas como sendo da coalizão, que podem prejudicar o arranjo para governar, mas não o partido, nunca o governo. Preocupado com a estabilidade e a governabilidade, Lula se esqueceu da credibilidade. Lula passava uma imagem de honestidade, como Lincoln. Nossa versão do ¿honest Abe¿ era o ¿honest Lula¿. Porém, a tentativa de ocultar os escândalos e evitar as CPI¿s destruiu essa imagem. O pior é não perceber que a corrupção e falta de credibilidade é a ponte que liga a crise do momento à crise de governo e esta à crise de regime.

Muitos companheiros se defendem ancorados nas respostas da população à afirmação de que ¿a democracia é sempre a melhor forma de governo¿. No fervor cívico das eleições de 2002, 76% concordaram. Ampla maioria, lembram. Porém, essas percentagens são muito mais altas nas democracias estabelecidas, próximas a 100%. Pesquisas comparativas, como o Latinobarômetro de 2004, produzem resultados preocupantes: 41% apoiam a democracia no Brasil, em contraste com 78% no vizinho Uruguai e 67% na Costa Rica. Abaixo de nós, apenas o Paraguai, a Guatemala e a Nicaragua. Em resposta a outra pergunta, semelhante à do ESEB, 69% estão de acordo, o que coloca o Brasil na média latino-americana.

A corrupção e a desmoralização das instituições públicas têm que ser levadas a sério. Elas ameaçam a democracia no Brasil. Nosso Presidente, na Africa, afirmou que o país que visitava ¿nem parecia a África¿. Pois bem, em Gana, 82% da população concordam com a mesma afirmação sobre a democracia e, no Quênia, 80% ¿ mais do que no Brasil. Junto com o Brasil estariam, no mesmo nível, Botsuana, Senegal e Uganda. Aliás, a idéia de entregar o poder aos militares é rejeitada pela quase totalidade da população em muitos países africanos. A rejeição aos governos militares varia de 64% em Moçambique a 95% no Quênia. No Brasil, ela é menor, 56%. O povo africano é muito mais democrático do que nossos preconceituosos olhos brancos conseguem ver. Em verdade, ou mudamos e combatemos a corrupção em sério, ou ¿a África¿ será aqui.