Título: Os órfãos da América em busca da saída
Autor: Augusto Nunes
Fonte: Jornal do Brasil, 08/06/2005, Internacional, p. A9

A história da Bolívia é uma seqüência de derrotas irreparáveis. Em guerras contra países vizinhos, o fracasso custou-lhe, além de milhares de vidas, dramáticas amputações territoriais. Em guerras internas, aristocratas nativos associados a hierarcas militares invariavelmente venceram o povo desarmado ¿ e a Bolívia foi submetida ao saque, sistemático e interminável, das muitas riquezas nacionais. A república fundada em 1825 está menor, mais pobre, menos estável, mais solitária que nunca. E mergulhada em outra crise política, como tem ocorrido nos últimos 180 anos. Derrotada na Guerra do Pacífico, perdeu para o Chile, em 1884, a estratégica saída para o mar. Em 1903, disputas de terras na fronteira amazônica conduziram à guerra diplomática facilmente vencida pelo Barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores do Brasil. Bastaram-lhe muitos subornos e algumas promessas jamais cumpridas ¿ o braço boliviano da Ferrovia Madeira-Mamoré, por exemplo. A contrapartida foi a anexação do atual Estado do Acre ao mapa do Brasil. Um grande negócio ¿ para o brasileiros.

O terceiro grande fiasco viria em 1935, com a Guerra do Chaco. Até consumar-se a derrocada, paraguaios e bolivianos trocaram chumbo em batalhas sempre terríveis, mas singularmente patéticas. Sob o patrocínio de companhias petrolíferas estrangeiras, interessadas nas jazidas do deserto do Chaco, guerreiros índigenas que nada falavam além do dialeto nativo embarcaram para o duelo a bordo de tanques de guerra que só conheceram na hora da batalha. Enfiados nos veículos blindados, paraguaios e bolivianos esbanjaram bravura e inépcia. Centenas de guerreiros lutaram descalços: não havia botas para todos. Poucos aprenderam a manobrar aquela invenção blindada. Muitos morreram ser ter decifrado manuais de instruções redigidos em inglês ou espanhol. Foi-se o Chaco, foi-se o petróleo. Foi-se outra saída entre as tantas fechadas por vizinhos vitoriosos e vorazes.

O confisco de muitas saídas para a modernidade foi providenciado por bilionários bolivianos premiados, por governos corruptos, com o direito de saquear sem concorrência, e isentos do pagamento de imposto, minas inacreditavelmente abarrotadas de ouro, prata e estanho. Nesse ramo, ninguém superou o legendário Antenor Patiño, que desperdiçava em Paris, palco das festas cinematográficas, o dinheiro obtido com o saque das minas bolivianas. Ele raramente visitava o país natal. "Prefiro a França", admitia.

"O povo boliviano é o órfão da América", resumiu o escritor Augusto Céspedes, morto em 1998. "Sobrevivemos sem parentes. sem amigos reais, sem aliados solidários, sem padrinhos misericordiosos. Estamos condenados à solidão". No momento, sempre desprovida de parceiros, a Bolívia busca preservar a última saída visível no horizonte econômico: a comercialização vantajosa do gás natural.

É uma luta penosa por vários motivos. No campo externo, será preciso dobrar um vizinho gigantesco e guloso ¿ o Brasil, principal comprador do gás boliviano. Na frente interna, uma ameaça secular segue rondando o órfão solitário: uma perigosa esquizofrenia geopolítica que historicamente opôs o altiplano que tem como pólo a capital La Paz às terras baixas da província de Santa Cruz de La Sierra. No mundo dos cruceños, o padrão de vida é sensivelmente melhor e famílias tradicionais simulam o cotidiano de nobres espanhóis exilados. Querem a autonomia.

Os moradores das regiões andinas, predominantemente miseráveis, têm origem indígena, pouco dinheiro e décadas de frustrações. Para anestesiar a boca e esquecer a fome, recorrem ao antiquìssimo hábito de mascar folhas de coca. Mas a costumam passar da apatia à fúria em poucos dias (ou horas). No momento aborrecidos com o presidente renunciante Carlos Mesa, já derrubaram muitos governantes.

Em 1939, retiraram o apoio conferido dois anos antes ao jovem coronel German Busch e o induziram ao suicídio. Os sonhos modernizadores de Busch, retocados por matizes nacionalistas e esquerdistas, apressaram a ascensão ao poder do major Gualberto Villarroel, líder do golpe desencadeado em 1943. O sonho durou três anos.

Com o apoio dos bêbados, dos mendigos, dos marginais, multidões de miseráveis da periferia de La Paz marcharam sobre o Palácio Quemado, dispostos a invadi-lo. Céspedes, então um político aprendiz, testemunhou o drama com o olhar do escritor. "A gente das ruas depredou o palácio, capturou Villarroel, enforcou o presidente num poste da praça e continuou a espancá-lo até que fosse reduzido a uma posta humana", descreve Cespedes. "No dia seguinte, ele só podia ser reconhecido pelos olhos verdes. Bolivianos de olhos claros são muito raros. Tão raros quanto os períodos de paz".

Tão raros quanto tempos de esperança, que houve. Nenhum foi tão duradouro quanto o vivido pela nação andina entre 1952 e 1964. Começou no primeiro mandato do presidente civil Victor Paz Estensoro, líder do Movimento Nacionalista Revolucionário, o MNR, versão boliviana do PT em suas origens. Minas de estanho foram nacionalizadas, mudanças na legislação acabaram com roubalheiras seculares, a Bolívia pareceu vislumbrar um atalho para o futuro. A esperança se esfumaçou com o golpe militar que encerrou o segundo mandato de um Estensoro já reduzido a refém de fardas e dólares.

De lá para cá, com ligeiros suspiros democráticos, prevalece a rotina da turbulência. A altíssima rotatividade no poder já induziu a crer que se instituíra a quartelada como forma de mudança de governo. A procissão de generais-presidentes inclui esquerdistas erráticos como Juan Torres, ultradireitistas como Hugo Banzer, traficantes de drogas como Garcia Meza. Até gente honrada. Ninguém encontrou a saída. Talvez não exista.