Título: Falta povo na integração sul-americana
Autor: Carlos Tautz*
Fonte: Jornal do Brasil, 09/06/2005, Outras Opiniões, p. A19
Os entusiasmados discursos em defesa da integração econômica da América do Sul pronunciados pelo governo brasileiro não têm levado em consideração um fato que deveria ser elementar em qualquer política pública: o povo, do qual todo poder deveria emanar e só em seu nome pode ser exercido, regra geral, sequer mencionado quando nossos (as) representantes falam das relações externas brasileiras, em especial de nossas relações com os vizinhos de continente.
Até aqui, os planos de integrar a região têm se limitado a promover investimentos de empresas brasileiras e a construir pontes, hidrelétricas, rodovias e outras obras típicas do Brasil Grande, aproveitando uma aparente liquidez de recursos no mercado internacional de financiamento de grandes obras - onde se inclui o fabuloso orçamento de R$ 60 bilhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), superior até ao do Banco Mundial. Já a necessidade real de espalhar o desenvolvimento para desconcentrar renda aparece como meta apenas secundária. Povo, que é bom, falta nessa estratégia.
O mais importante instrumento de integração utilizado por Lula hibernava nas gavetas oficiais desde o governo FHC. É a IIRSA, a Iniciativa de Integração da Infra-Estrutura da Região Sul-Americana, um conjunto de grandes obras para o qual as empreiteiras esfregam as mãos e arregalam os olhos. E o povo - o sempre esquecido - de nada sabe porque os governos pouco dialogam com suas sociedades - apesar de serem elas quem historicamente sofrem os impactos sócio-ambientais de megaempreendimentos.
Planejada para servir de plataforma de exportação de mercadorias, principalmente para a Ásia, a IIRSA manterá a América do Sul como provedora internacional de insumos naturais com baixo valor agregado localmente - o que mantém a histórica concentração de riquezas que caracteriza a região. Esse indicativo se confirmou após a China e a Índia terem pedido associação ao BID, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, que coordena a implantação da IIRSA. Responsáveis por mais de 40% da população mundial, esses dois gigantes devoradores de recursos naturais acumulariam então dois tipos de poder. Participariam das escolhas dos projetos a serem financiados pelo BID e, lá no final do processo, ainda poderiam usar seu poder de grandes compradores para barganhar melhores preços na compra de produtos exportados pela América do Sul.
A integração proposta também pretende dar um peso político maior à América do Sul, em um contexto internacional de constrangimentos impostos pelo hiperimpério estadunidense. Mas, erra fundamentalmente porque o povo - ora, o povo!, diriam os nossos planejadores econômicos - continua fora da história, mesmo estando claro que é a vontade popular o que historicamente inibe intenções expansionistas.
O discurso da necessidade de grandes obras de infra-estrutura para gerar desenvolvimento e integração é aceito facilmente pelo povo - olha ele aí, afinal! - necessitado de empregos e também por governos, sempre ávidos por recursos fiscais em volumes crescentes. Além de povo, nessa história falta igualmente cultura democrática para debater o desenvolvimento com que as sociedades sonham. Inclusive para estimular uma integração que não visasse apenas aos mercados, mas que colocasse no centro das preocupações o intercâmbio de experiências dos povos nos campos das artes, da educação, da saúde, da segurança, da proteção ambiental.
Venezuela e Cuba mostram de forma simples e firme como é possível integrar socialmente os países. Caracas vende petróleo com desconto de 25% a Havana, que em troca envia para a Venezuela milhares de médicos (as) de família para atender aos pobres. Está na hora de as demais nações sul-americanas entenderem este recado: ou se planta integração com povo, ou se colhe o caos social, como na Bolívia.
*Carlos Tautz é pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase)