O Globo, n. 32791, 18/05/2023. Economia, p. 11

Arcabouço fiscal avança a plenário

Victoria Abel
Paula Ferrreira
Cássia Almeida


Em uma vitória do governo federal e do Ministério da Fazenda, a Câmara dos Deputados aprovou ontem a urgência do projeto de lei do novo arcabouço fiscal. Com isso, a proposta não passará por debates nas comissões e vai diretamente para votação em plenário, quando o mérito do texto será analisado. A expectativa é que a votação aconteça na próxima semana, dia 24.

Após semanas de intensa negociação que envolveu diretamente o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a urgência foi aprovada por 367 votos favoráveis e 102 contrários. Pela manhã, em audiência na Câmara, Haddad havia previsto a aprovação com pelo menos 300 votos. À noite, ele voou para São Paulo, mas não comentou o resultado.

No plenário, o deputado federal Cláudio Cajado (PP-BA), relator do projeto, fez um apelo para que os deputados votem a favor da proposta:

— Estamos votando a lei mais importante deste ano. Peço que deixem de lado a questão ideológica. Continuo indo nas bancadas, aberto para ouvir. As críticas são poucas e pontuais.

Na terça-feira, Cajado apresentou seu relatório, incluindo sanções em caso de descumprimento das metas fiscais, como proibição de aumento salarial de servidor, criação de cargos e realização de concursos. Não havia sanções no projeto original do governo, apenas que gastar mais que o determinado reduziria o aumento das despesas no ano seguinte. Os “gatilhos”, juntamente com a limitação das exceções à política fiscal, foram bem recebidos pelos analistas.

Já a permissão para que a regra de limitar o crescimento dos gastos públicos a 70% do aumento das receitas seja descumprida logo no primeiro ano de vigência do novo arcabouço foi considerada negativa por especialistas. O relatório prevê que as despesas vão crescer 2,5% acima da inflação em 2024, mesmo que a receita cresça menos.

— Propôs uma regra que não vai ser obedecida no primeiro ano de vigência, só vai valer em 2025 — criticou Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do Ibre/FGV.

Para o ex-diretor do Banco Central Tony Volpon, o projeto ainda pode mudar no Congresso, e há chances de que esse seja um dos aspectos que podem sofrer alterações:

— Lembrando que o governo Temer fez isso. Quando o teto (de gastos, que limitava o crescimento da despesa à inflação) foi feito, houve a incorporação de vários gastos que jogaram o teto para cima. Sempre tem um pouco de flexibilidade no início da regra.

Cajado afirmou que tenta convencer os deputados do PT de que é mais viável manter as medidas dentro da meta fiscal:

— Você tem condições de, além da inflação, ter um crescimento real de, pelo menos, 0,6%, chegando a 2,5%. É mais vantajoso estar dentro.

O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, responsável pela articulação política do governo no Congresso, está otimista com a aprovação do projeto depois da vitória de ontem:

— Essa votação sinaliza que a gente pode votar o conteúdo, que também segue as diretrizes encaminhadas pelo governo do presidente Lula.

Resistência na base

Blocos liderados por União Brasil-PP e MDB-Republicanos encaminharam favoravelmente, assim como a federação PT, PCdoB e PV. O projeto, no entanto, encontrou resistência em partidos que integram a base governista. A federação PSOL-Rede encaminhou voto contra, alegando que gostaria de mais tempo para debater a proposta.

—A Rede reafirma que é base do governo Lula. Mas a Rede tem várias objeções à proposta do governo. O texto que temos hoje espreme os sonhos do governo —disse o líder Túlio Gadelha (Rede-PE).

PL, Novo e lideranças da minoria e da oposição foram contrários à urgência. A deputada Bia Kicis (PL-DF), do partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, criticou o texto:

— O projeto é uma velha opção de aumentar despesas, impostos. Temos um sistema melhor, do teto de gastos. Um tema dessa importância teria que ser discutido na Casa e não em regime de urgência.

O PSD sugere um acréscimo ao mecanismo que permite ao presidente da República aumentar as despesas por meio de mensagem enviada ao Congresso. O deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) quer que o projeto deixe claro que o aumento de impostos não pode ser mecanismo de compensação:

— Estou fazendo sugestões sem tirar a essência do substitutivo. Para essa válvula de escape em que o governo pode, por meio de lei complementar, desarmar gatilhos, não ter novo envio de impostos. É uma garantia de que a carga tributária será neutra. Não dá para criar CPMF porque o modelo não está ficando de pé.

Líder do governo no Congresso, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) disse que o PSD vai indicar a relatoria do arcabouço no Senado. Otto Alencar (BA) e Omar Aziz (AM) são os nomes cotados.

Pires, da FGV, considerou positiva a forma como o relator tratou a questão dos bloqueios de despesas, chamados de contingenciamentos. O deputado voltou com os bloqueios, mas limitando a 75% do que seria necessário para cumprir a meta, dando mais flexibilidade para a gestão pública:

— Se a diferença fosse grande, não seria factível, levando o gestor a fazer relatórios mais otimistas para indicar um contingenciamento menor ou a estabelecer metas fiscais muito pouco desafiadoras. E assim se evita o shutdown (paralisação da máquina pública).

Pouco espaço para cortes

Margarida Gutierrez, professora da Coppead/UFRJ, elogiou as sanções incluídas no relatório. Mas afirma que as punições não atingem um dos principais indexadores do Orçamento, o salário mínimo, que de referência para a correção de 70% das despesas obrigatórias:

— De novo, sobrou para o servidor. O maior problema, que já tinha na proposta original, ficou: o salário mínimo está preservado (ele está dentro da regra, mas terá correção própria com inflação e o resultado do PIB de dois anos atrás).

Ela diz que, com isso, uma parte pequena das despesas obrigatórias poderá sofrer congelamento se os gatilhos forem acionados. A economista lembra que há piso para o investimento (em torno de R$ 70 bilhões) e as despesas de saúde e educação que seguem o comportamento da receita:

— Sobre quais despesas vai ter gatilho?

Ela lembra que 50% das despesas obrigatórias, INSS e Benefício de Prestação Continuada (BPC), aumentaram 2,5% acima da inflação nos últimos dois anos, um crescimento vegetativo provocado pelo envelhecimento da população:

— Numa situação em que as despesas só possam crescer 0,6% (conforme prevê a regra fiscal se as receitas aumentarem pouco), os gastos que não são INSS e BPC vão ter que cair 0,8% em termos reais (descontada a inflação) para compensar.

Segundo ela, vai ocorrer o mesmo problema do teto de gastos, que comprimiu gastos que não são obrigatórios, afetando serviços públicos.

Volpon faz um balanço positivo das mudanças do relator, ainda que as sanções sejam menos duras do que foi sinalizado anteriormente:

— Não havia mecanismos de enforcement (sanções por descumprimento das metas) na proposta original. Não houve uma mudança radical. Mas não desagradou o mercado.

Ele diz que a votação do arcabouço é um dos fatores que o Banco Central observa para definir os juros, além da decisão sobre a meta de inflação, se vai ser mantida, aumentada ou se levará mais tempo para alcançada. O Conselho Monetário Nacional se reúne no fim de junho para determinar os parâmetros. O objetivo em 2023 é de 3,25%, caindo para 3% em 2024 e 2025.

— A aprovação do arcabouço fiscal, a solução sobre a meta (de inflação), com commodities e dólar caindo, acredito que na reunião de agosto o BC já vai dar a senha para cortar os juros em setembro.