Título: Além do Fato: Inclusão para superar impasse
Autor: Sheila Machado
Fonte: Jornal do Brasil, 12/06/2005, Internacional, p. A13

Após 24 dias de manifestações em La Paz e El Alto e de bloqueios de estradas que paralisaram o país, o jurista Eduardo Rodríguez assumiu a presidência no lugar de Carlos Mesa. Contando ainda com o apoio militar e com um razoável popularidade (40%), Mesa saiu de cena por ter se mostrado incapaz de solucionar o embate entre as demandas do setor oriental, por maior autonomia política e a manutenção do modelo econômico liberal, e as reivindicações indígenas e sindicalistas do ocidente, defendendo a nacionalização dos hidrocarbonetos, com a expropriação das empresas privadas do setor, além da convocação de uma Assembléia Constituinte. Entre as forças antagônicas, um ponto em comum: a exigência da renúncia do presidente. O empresariado de Santa Cruz (Leste) defende a descentralização política, de modo a ampliar a autonomia, principalmente orçamentária, em claro temor face aos rumos do governo central com o avanço dos partidos de esquerda. Os cruceños exigiam de Mesa o uso dos poderes constitucionais para conter os bloqueios que interromperam as atividades produtivas. Questionava-se a permissão aos protestos pacíficos e o não uso de meios violentos (polícia e Exército) contra os manifestantes, como uma postura negligente frente à radicalização. Ao Norte de Santa Cruz, camponeses tomaram sete campos de petróleo, colocando em risco a produção do recurso que, combinado ao gás natural, responde por quase 50% da pauta de exportação ¿ volume praticamente decuplicado desde 1998, com US$ 820 milhões em 2004.

O efeito para a melhoria na distribuição de renda e a redução da pobreza, no entanto, foi pequeno ou nulo, e isto explica as demandas de camponeses, sindicalistas e, sobretudo, indígenas. Dados do Banco Mundial revelam que, entre 1997 e 2002, a taxa de extrema pobreza nos índios bolivianos permaneceu em 52%. Já a taxa de pobreza diminuiu de 75% para 74%, enquanto que, na população não-indígena, a redução foi de 57% para 53%. Assim, os indígenas, 62% da população, vêem não só a manutenção de suas péssimas condições de vida, como uma continuidade perversa visto que, em comparação com os outros, são menos favorecidos não só na diminuição da pobreza, mas também no acesso à saúde e à escolaridade. Parece crucial que esta parcela da população tenha ampliado sua atuação no processo de decisão, como modo de não só melhorar a responsabilidade e prestação de contas sobre políticas sociais, mas, de modo mais amplo, avançar rumo a um projeto nacional.

A renúncia de Mesa permitiu aos atores políticos a construção de um consenso mínimo em torno de Rodríguez, em seguimento às renúncias do presidente do Congresso, Vaca Díez, e da Câmara dos Deputados, Mario Cossío. O senador de Santa Cruz chegou a articular uma aliança entre MIR, MNR e NFR, partidos tradicionais que juntos detêm mais de 2/3 das cadeiras do Congresso. Após a morte de um mineiro nos protestos, e frente ao risco de se reviver o outubro negro de 2003 (mais de 60 mortos), a NFR recuou. O consenso, então, ao menos de imediato, barrou a continuidade de partidos, que, apesar de maioria, vêem sua base popular cada vez mais fraca ¿ a participação do MIR sobre a votação nacional no pleito municipal de 2004 foi de 6%, a do MNR, 5%, e a da NFR, 2,5%.

O acordo em torno de Rodríguez, do qual fizeram parte Mesa, Díez, Cossío, o partido de oposição MAS e a Central Operária Boliviana (COB), incluiu a exigência de eleições para Executivo e Legislativo, sob pena de o novo presidente se ver tão cerceado quanto Mesa, que nunca teve base parlamentar estável. Ocorre que, pelas regras constitucionais, os poderes de Rodríguez se limitam a convocar eleições para presidente e vice-presidente, com mandato até agosto de 2007. Nelas, caso ninguém alcance, em primeiro turno, a maioria absoluta, caberia ao Congresso eleger, entre os dois nomes com mais votos válidos, por maioria absoluta, o novo presidente. A superação deste problema, com a antecipação também do pleito parlamentar, exigiria uma emenda à Constituição ou a renúncia dos congressistas. Nos dois casos, o rumo da política se mantém nas mãos do Congresso, cuja representatividade é questionada.

A fragilidade do novo consenso logo se revela, já que mesmo se abafada a pressão das ruas, as demandas conflitantes por nacionalização e autonomia permanecem. Após o breve fôlego, a superação de tais impasses passa pela convocação da Constituinte, por meio da qual se canalizaria o embate ocidente/oriente para um fórum adequado, evitando o risco de secessão. A inclusão de indígenas e sindicalistas se daria na medida em que fosse afastado o radicalismo, e superada a crença desses atores em respostas políticas fáceis que poderiam levar a um governo autoritário. No âmbito de uma Constituinte, com a eleição de parlamentares que representem efetivamente a população, seria possível pensar um projeto nacional de desenvolvimento e inclusão. Nesse sentido, a posse de Rodríguez, longe de superar o quadro de instabilidade e vácuo de poder, pode ser vista como finalmente uma oportunidade para um fórum de diálogo nacional, a Assembléia Constituinte.

Cientista política e pesquisadora do Observatório de Políticas Sul-americanas do Iuperj